O ACORRENTADO – Parte III

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– As internações

A segunda internação causou revolta na família de Seu Apolinário porque o menino-retraído foi tratado como um “bicho”. Ele foi amarrado numa cama, permanecendo assim, dois meses seguidos; para piorar, recusou-se a comer e emagreceu, ficando pele e osso. O molho de chaves, no entanto, foi expelido como o prego, naturalmente. A situação tornou-se crítica porque desejavam que o caçula voltasse para casa, porém, começavam a compreender que as crises não seriam passageiras, e a internação, no que afligia, aliviava, assim como também o retorno do Furioso.
O que aconteceu, com o passar dos anos, foi que Arthur percorreu todos os hospitais psiquiátricos da região: em alguns, era bem tratado, em outros, não. E sua família lutava para que permanecesse naqueles que melhor conduziam o tratamento, e nem sempre conseguiam. Às vezes, ele fugia e Igor precisava procurá-lo de moto; invariavelmente o encontrava e o levava para casa. Outras vezes, o hospital dava alta porque vencia o prazo de reclusão; alguns passaram, inclusive, a não recebê-lo depois da segunda estadia.
E foi no intervalo entre a quarta e a quinta internação, que Seu Apolinário, conversando com Igor, resolveu acorrentá-lo: o Furioso, se soltando dos nós, quebrara a cama, e acertara D. Marieta nas costas de tal forma que a mulher foi internada durante dez dias, no hospital municipal. Não dava para ficar sem os dois em casa, pensou o patriarca, ele não suportaria: então, depois que se certificou de que a mulher estava fora de perigo, planejou, com o filho, imobilizar o Furioso sem lhe dar a chance de escapar.
Eles furaram a parede do quarto, na parte de baixo, e atravessaram um ferro; depois soldaram do lado de fora e verificaram que estava bastante firme. Repetiram a operação, na parte de dentro, soldando uma grossa corrente de oitenta centímetros, com a qual amarrariam o braço de Arthur. Fizeram o mesmo, mais ao fundo, numa distância que desse para acorrentá-lo numa posição vertical. O Furioso ficaria praticamente dependurado.
Arthur, porque vira a mãe estendida no chão, permanecia quieto num canto, não oferecendo nenhuma resistência à nova forma de aprisionamento. Ele ficou suspenso e parecia não se incomodar. “Isso deve doer depois de algumas horas; se ficar ruim para ele, tiramos. Certo, pai?” Perguntara Igor, com peso no coração. “Tiramos sim, não se preocupe.” E não tiraram. Aquela era a forma mais segura que puderam encontrar. A janela já havia sido fechada, retiraram o colchão e mantiveram o penico; nenhum vizinho corria o risco de ver o que acontecia e a tranqüilidade voltara, enfim, à casa do final da vila.
E quando alguém perguntava pelo menino-retraído, muitas vezes, respondiam que estava internado em outra cidade, um tanto distante: Santo André, por exemplo. E comentavam que estava bem, que ganhara peso e que logo estaria entre eles. Assim, o tempo passou e o Furioso ganhou uma nova condição na família: a de acorrentado.

– Ela, definitivamente

Igor decidiu que precisava conhecê-la antes que viesse a sua casa. O que a psicóloga encontraria seria novidade suficiente, devia, portanto, apresentar-se, mostrando o restante da família. Assim, telefonou para a Clínica e marcou uma sessão, resolvendo também que levaria o Gustavo. Era a primeira vez que tomava a iniciativa para conversar com alguém sobre suas vidas e nem sabia mais o que desejava: seis anos se passaram e acostumara-se com o não-consolo, aceitara seu destino e, em períodos breves, até sentia um tênue sopro de felicidade.
Em sua casa, os cuidados com o Acorrentado, em nada diferiam dos cuidados com um animal que tinham que manter entre eles: o quarto escuro, as correntes, o penico e um “bicho”, calmo ou Furioso. Religiosamente, ao meio-dia, D. Marieta empurrava a porta bem devagar e sondava o ambiente, depois entrava. Se estivesse calmo, avançava e, de joelhos, lhe dava comida na boca. Se estivesse agitado, colocava a comida o mais próximo e saía. Às vezes, o Furioso uivava, às vezes, grunhia. Quando conseguia reunir coragem, a mãe olhava para os ferimentos do filho causados pelas correntes e chorava escondido, depois pedia para Igor passar algum remédio.
Gustavo, que já morava com eles, vez por outra, se oferecia para alimentar o caçula e D. Marieta sentia gratidão. Ela então permanecia sentada em sua cozinha, olhando para as panelas e olhando através delas. Não pensava, vagava numa ausência indefinida, neutra, branco-leitosa. Se pensasse, perderia o juízo; se pensasse, morreria; se pensasse, desistiria. Depois o neto aproximava-se, mostrava o prato vazio e carinhosamente abraçava a avó: os fios brancos do cabelo da avó misturavam-se aos fios pretos do cabelo do neto: a mesma cozinha, as mesmas panelas, o mesmo silêncio, a mesma dor. Apenas um destino, Meu Deus, somente Um.
Foi D.Marieta quem pediu para que não prendessem os pés do menino-retraído. E de tanto falar e de tanto resmungar, conseguiu. É claro que corriam mais riscos porque Arthur ganhava mobilidade e chegou a escapar batendo em todos com a corrente presa no braço. Deu correntada em quem se aproximava, entrava e saía dos cômodos batendo com a corrente nas paredes, nos móveis, no que ainda pudesse ser destruído. Dessa vez, engoliu um “naco” de massa de reboco com pedaços de vidro, era da beirada da janela da cozinha; precisou ser internado.

– O encontro

Ao ouvir seu nome, levantou-se e apertou a mão da moça. Mostrou o sobrinho, apontando para o menino que permanecera sentado, acompanhou-a e sentou-se. Ela era aquilo mesmo que seu pai dissera: simpática, jeitosa, receptiva. De dentes muito brancos também. Era magra, estilo mignon, não muito nova, de olhos azul-escuro como os seus. Jurava que era. E conversaram, como se fosse a primeira vez, sobre o destino incomum da família do Furioso. Igor não sabe dizer o que sentiu, mas algo diferente vinha da moça e, reciprocamente, algo diferente era produzido em seu peito. Havia uma reciprocidade, um ponto comum, uma possibilidade de permanência.
E desatou a falar, e tirou os óculos, quis parecer jovem, bonito. Falou da moto, de sua paixão pela velocidade, falou de si; esqueceu, por alguns minutos, que era irmão de um cara que permanecia acorrentado num quarto escuro, numa casa que ficava no final de uma vila. Assustou-se, retomou a obrigação de irmão, pronunciou a palavra esquizofrenia e pediu para compreender o que significava tudo aquilo. Quase chorou e não se perdoaria se tivesse derramado lágrimas na frente da moça, no primeiro encontro.
Saiu radiante, como se pisasse em nuvens; seria capaz de dispensar a moto e iria a pé, se não fosse distante; depois pensou que, mesmo longe, iria caminhando, se não estivesse com Gustavo. “O senhor tinha razão, ela é diferente, pai.” Disse, ao descer da moto, em frente ao bar. Seu Apolinário percebeu a entonação vibrante e teve receio, “cuidado, filho, cuidado.” Pela primeira vez, o segurança-folguista olhou seu pai de frente e ousou discordar dele. Nada disse, mas não via razão para “tomar cuidado”, cuidado com o quê? Perguntava-se: “com o quê?” E limpava os óculos, “ela pode nos ajudar sim, e muito.”
Decidiu que se a moça receptiva tivesse realmente a coragem de visitá-los, deveria protegê-la de Arthur. Se o valentão avançasse para cima dela, algo importante se perderia e não estava disposto a perder o que conquistara olhando diretamente para aqueles olhos azuis. E o amigo da Dona Baratinha, percebeu, pela primeira vez, que tinha algo a perder. Foi até seu quarto, tirou o livro sobre esquizofrenia do fundo de uma gaveta e releu: queria ter assunto para falar com a moça e queria, antes de tudo, compreender. “Eu sei que se ela explicar, eu compreenderei, eu sei.” E sentiu esperança-de-futuro, pela primeira vez.

– A visita

Ela marcou a visita e Igor iria buscá-la. Viria na frente, com sua moto, pois não queria que se perdesse. Chegou cedo, e apesar do calor, vestia um grosso casaco preto de inverno. Achava que ficava bem assim. A moça foi pontual. Cumprimentaram-se e seguiram rumo ao distante bairro na periferia. Acompanhava atentamente os movimentos da psicóloga através de seu retrovisor e não a perdeu de vista, era um bom guia. E ganhou as ruas, e venceu o vento, e sentiu-se forte dentro do casaco preto. Então sorriu. E ninguém reparou nem soube, porque estava de capacete. Sorriu de novo. Olhou para trás e fez sinal, ela compreendeu e devolveu o sinal: o sorriso permanecia, mas a moça não poderia ver.
Foram se aproximando da rua, da casa, do lar do Furioso. Ele estacionou a moto concentrado, não sorria mais. Um menino passou correndo e apontou, gritando: “olha o irmão do biruta!” A moça desligou o carro, ele abriu a porta, “é aqui, indicando a casa que ficava bem em frente.” Seu Apolinário desceu as escadas e veio cumprimentá-la, “vamos, doutora, estão todos lá dentro.” O pai seguiu na frente, apressado, porque Arthur estava sozinho com Marieta e Gustavo. Fizeram o mesmo. O caçula permanecia calmo naqueles dias porque tinha saído do hospital e ainda estava sob o efeito dos remédios.
Todos os esperavam na cozinha, D. Marieta fizera um bolo e café. Arthur andava de um lado para outro, impaciente. Ele conhecera a moça-bonita no hospital e ficava repetindo: “ela veio. Ela veio. A doutora veio.” Gustavo estava em pé na porta e, afastou-se, quando Seu Apolinário apontou na sala. Entraram. Igor dirigiu-se até o irmão, abraçou-o e permaneceu com o braço em seu ombro. Poderia contê-lo, se precisasse; era terno e prático, falava suavemente, mas alterava o tom de voz quando julgava necessário. A moça parecia à vontade, sentou-se e aceitou o café com bolo. Todos comeram. Igor, então, pediu que explicasse o que era a esquizofrenia.
A psicóloga falou calmamente, enquanto ouviam com atenção; de vez em quando, alguém perguntava ou emitia uma opinião. Falaram sobre o já-falado e ela tentava esclarecer, orientar, aproveitando a oportunidade para tornar possível uma compreensão da doença que permitisse menos sofrimento e alguma qualidade de vida para os envolvidos. O mais importante, reparava Igor, era que compreendia a situação e não os recriminava por acorrentar o Furioso. Nunca acontecera isso, as pessoas reagiam instintivamente ficando horrorizadas com o quarto escuro. Ela não, parecia compreender a não-saída, o desconsolo; parecia solidária com o destino irrevogável de todos os habitantes da casa do final da vila.
A moça receptiva quis ver o quarto, eles sentiram desconforto; Seu Apolinário foi o primeiro a se recuperar, disse: “a doutora não vai gostar.” Ela insistiu, então arriscaram. Entraram, era escuro, ela deu alguns passos e sentou-se. Fedia; a corrente estava lá, ela pediu para ser acorrentada; Igor hesitou, não podia acreditar. A psicóloga esperou, ele fez; todos ficaram em silêncio. Silêncio. A moça levantou-se e certificou-se que Arthur realmente tinha certa mobilidade; “viu, doutora, ele consegue mover-se”, falou Seu Apolinário, satisfeito.
Igor pediu para soltá-la, e retornaram para a cozinha. Acomodados, falaram de remédios, e a psicóloga insistiu para que dessem a medicação de forma correta; fez uma tabela, para que não se confundissem. Seu Apolinário contou, comovido, que se sentia decepcionado com o governo, com os médicos e com o sistema de Saúde Pública, em geral. “Eles não sabem nada sobre essa doença, só dizem que sabem”. E continuou: “nunca procuraram compreender a nossa situação, doutora; apenas medicam o Arthur e o devolvem para nós. Não há acompanhamento…” A voz do chefe da casa ficou embargada. Fez-se silêncio. Igor não reconhecia seu pai, mais um pouco e o homem que enterrava os mortos derramaria lágrimas.
Ninguém da família queria que Seu Apolinário chorasse. Não havia, entre eles, espaço para manifestações individualizadas de sentimentos; não havia entre eles brechas para sofrimentos outros que não o coletivo, não poderia haver. Igor não sabe se a moça percebeu que algo estava para se romper, mas ela impediu falando que Arthur realmente precisava de um acompanhamento psiquiátrico contínuo, com o mesmo médico. A psicóloga não compreendia porque não adotavam esse procedimento, porque não os orientavam, porque não operacionalizavam a solidariedade.
“Indiferença, doutora, indiferença.” Falou Seu Apolinário, mais contido, recomposto. “Indiferença que nós devolvemos com desprezo.” A raiva agora contornava cada palavra do coveiro e ressoava pelas paredes, rebatia nas xícaras, boiava no café. Foi então, que Igor percebeu que, inúmeras vezes, sobreviveu porque apenas odiava. Odiava o mundo, odiava a esquizofrenia, odiava os médicos, odiava a todos os que não pertenciam a sua família. Odiava. A exceção viera por conta da psicóloga que, justamente naquele instante, reunia-se com eles; e parecia que o efeito da presença dela fora o mesmo para o pai, para a mãe, para o irmão e para o sobrinho.
Igor estava tão concentrado em seus pensamentos que não percebeu que o Furioso soltou-se e sumiu, por instantes; foi então que reapareceu com um gatinho na mão, veio resmungando e o colocou no colo da moça, dizendo: “cuida!” O irmão-com-lentes-grossas puxou Arthur para junto de si e zangou-se: “que cuida, o quê! Deixa ela.” Era um dos sete filhotes da gata de Gustavo, estavam para ser doados e não se sabe como não morreram porque o leite da gata havia secado.
“Cuida”, ele continuou e alterou a voz. O clima ficou tenso, mas logo se dissipou porque a moça receptiva disse que levaria o gatinho consigo. Pediu que Arthur lhe desse um nome. Ele balançou a cabeça e ficou repetindo: “um nome, um nome, um nome…” Como não conseguia, Gustavo se ofereceu: “posso?” Todos responderam: “huh.” “Que tal Josefine?” Seu Apolinário riu, o Furioso gargalhou, D. Marieta fez cara de aprovação e a psicóloga concordou. Igor adiantou-se, curvou um pouco o corpo, fez uma deferência e declamou: “Tu, agora e para sempre, serás chamada de Josefine”. O caçula aplaudiu e começou a pular feito canguru; todos riram.

– O pós-visitação

Ela partiu e sua ausência transformou-se em presença. Abriu-se um espaço único no-peito-de-todos e, sem perceber, ficaram dias convivendo com o que a moça de olhos azuis representava. Igor foi o mais atingido, portanto, tornou-se o mais efervescente. O curioso é que conversava com a psicóloga-ausente, e a imagem que escolhera, daquele dia incomum, fora o instante em que se deixou acorrentar, ajoelhada. Ele quase conseguia ver a situação através dos olhos dela: Igor nunca tivera coragem de se acorrentar, nem em pensamento. E lhe parecia absurdo que, nem por um segundo, quisesse experimentar a sensação do aprisionamento pela corrente.
O que sentiria se prendessem seu braço? O que sentiria se ficasse à mercê de alguém que viesse alimentá-lo? O que pensaria nas longas horas inertes dos dias escuros do quarto sem janela? Igor pensava, pensava, pensava. E se não pertencesse a sua família? Qual opinião formaria sobre o Furioso? O motoqueiro, naquela noite, não dormiu; abriu sua pequena janela para olhar as estrelas enquanto tentava se imaginar vizinho do Maluco do final da rua. Será que estaria enlouquecendo? O fato é que sentia uma vontade incontrolável de ver diferente, de considerar o outro lado. “A doutora algemada, a doutora algemada”, ficava balbuciando, “o que, sinceramente, a psicóloga pensava de tudo isso?”

– A consulta

Duas semanas depois, a moça de dentes brancos conseguira marcar uma consulta para Arthur, com um psiquiatra do Ambulatório Municipal. Estava agendada para as 14 horas e trinta minutos, Igor encarregou-se de levar o irmão, na moto, e ela chegara bem antes para tentar conversar com o médico, a sós.
Havia uma fila enorme de pacientes para serem atendidos e o médico não chegava. A psicóloga, quando ouviu o barulho da moto, saiu para recebê-los e deparou-se com o Furioso agitado, fazendo caretas. O caçula, ao constatar que ela se aproximava, gritou que era uma “traidora” e que estava tramando para interná-lo. Correu e esbarrando na doutora, entrou no ambulatório, subindo as escadas, continuando a gritar enquanto apontava o dedo: “traidora, você quer me internar.” No meio do corredor, encontrou um orelhão, discou para um número imaginário e contou que não queria voltar para o hospital.
Igor estacionou a moto às pressas e correu em direção ao irmão. Ele, então, deu meia volta, saltou o muro, contornou o ambulatório e ganhou a rua. Os outros pacientes ficaram agitados e a enfermeira quis chamar a polícia; a moça receptiva insistiu para que não o fizesse e prometeu que iria acalmá-lo. Nessa hora, o irmão do Furioso já descia a rua de moto para encontrá-lo; minutos depois, ligou avisando que o seguia e os dois, então, tiveram a idéia de voltar para casa, combinando de resolver a situação quando chegassem.
A psicóloga chegou primeiro e esperou. Eles demoraram. De quinze em quinze minutos, Igor telefonava para avisar o que se passava. Quando, enfim, conseguiu conduzir o irmão, percebeu que a família aguardava na porta do bar. Arthur continuava agitado e, ao avistar a moça, começou a dizer que era médico e que era ele quem iria interná-la. Depois pediu um rim: “você é minha amiga e é médica, consegue um rim para mim”. Seu Apolinário achou melhor acorrentá-lo. “Eu preciso de um rim novo, eu preciso, consegue um rim para mim. O Igor tem um rim que funciona.” Implorava, enquanto o imobilizavam.
Todos se dirigiram para a cozinha e D. Marieta quis fechar a porta para que não fossem incomodados com os gritos do caçula. Ela pediu que a porta ficasse aberta e, depois de um tempo, foi até lá. A psicóloga sentou-se ao lado do menino-retraído enquanto os demais membros da família ajeitavam-se. Arthur falava coisas desconexas, mas mesmo assim ela respondia, completando frases e dando prosseguimento ao assunto. D. Marieta ficava tão impressionada que achava que era uma espécie de mágica ou de milagre. Em sua casa, nunca conseguiram conversar com o Furioso em crise, nunca consideraram a comunicação possível. Por quê?
Era comovente ver uma estranha entabular conversa com seu filho doente, tão agitado, Furioso. Por que não conseguia? Por que não tentara? Por que não aprendera? Tinha tanto tempo, santo Deus. Convivia com ele no bar, alimentava-o ajoelhada no quarto sem janela, levara-o para a escola, passava suas roupas, conhecia suas esquisitices mais do que a si própria. Arthur era seu menino-quieto e D. Marieta sequer conversava com ele. Uma lágrima escorreu tímida. O escuro do quarto a protegia dos outros, no entanto, aquele mesmo quarto clareava sua alma, cheia de feridas.
A naturalidade da estranha, tão perto do caçula, correndo o risco de levar um soco, a incomodava. Uma raiva começou a formar-se, a agitar-se, a apoderar-se dela. A moça não pretendia absolutamente nada e conseguia tudo. Seria uma farsante? Uma dissimulada? Seria uma dessas arrogantes que precisava da desgraça alheia para alegrar-se com seu “mundinho normal”? D. Marieta trincou os dentes e desejou que desaparecesse, que virasse fumaça e que saísse de suas vidas sem deixar marcas, indiferentemente. Parou suas reflexões exatamente nesse instante, porque Arthur pedia agora um coração novo, quis ouvir.
“O meu coração está doendo!” E a moça-receptiva ergueu o braço, colocando a mão em seu coração e o caçula colocou a sua sobre a dela. Enquanto assim permaneceram uivou como um lobo. Uns dez minutos. Uivos altos, contundentes, expressivos, feitos da dor do que não se compreende. Igor mal respirava. Seu Apolinário não acreditava e Gustavo tremia. Os uivos eram de um lobo-gente, de um lobo-gente-doente, eram sons que ocupavam o lugar de frases porque Arthur não conseguia comunicar, porque não podia compreender. E uivar daquele jeito comunicava, lançava para fora, punha no mundo a existência, humanizava.
E da comunicação dolorosa da Fúria através de um coração doente, sob as mãos de uma estranha, veio o choro. Em profusão, peito acima, necessário. Arthur chorava. E os demais se iluminavam, chorando em silêncio. E o Mundo esperou esperando, ouvindo o choro. Os da não-família calaram, também esperavam. O caçula colocou a cabeça no ombro da moça e suas lágrimas despertavam pregos engolidos, móveis destruídos, indiferenças institucionalizadas, dores insolúveis de família e explicações inúteis de livros. Foi tanta coisa passando em revista pelo quarto escuro que o Furioso ficou zonzo, que sua família praticamente levitava e a moça magra enchia-se de volume, resplandecente.
O caçula então se afastou, retirando do seu peito a mão da psicóloga, olhou nos olhos dela e falou: “Por que eu engulo caco de vidro? Por que meu coração dói? Por que eu quero morrer? Por que eu sou assim?” E afastou-se mais ainda, encostando-se na parede e chorando uma segunda etapa. A de pós-palavras que humanizam, a de pós-palavras que veiculam a percepção dolorosa dos animais que possuem auto-consciência. Depois calou, depois deitou, depois dormiu.
O que aconteceu, nesse instante, com as pessoas da Família foi que algo descolou de suas almas e deixou um vazio, uma distância, um formato de ausência. Estavam salvos. A primeira sensação que tiveram foi de ver através dos olhos dela: Seu Apolinário passou do desprezo para a aceitação, D. Marieta saiu da passividade ressentida e culposa para a iniciativa amorosa, Igor conseguiu conquistar a si mesmo na diferenciação e Gustavo teve a certeza de que existia entre pessoas.
Foi tão impressionante essa conquista que perceberam, ao mesmo tempo, que os olhos dela não eram azuis, eram verdes. E quanto à moça, ficou tão feliz por conseguir juntar os mundos de dentro e de fora que resolveu que contaria para o Mundo o que se passara no quarto escuro. Ela começaria assim: era uma vez um moço retraído que ficava acorrentado porque tinha esquizofrenia. Parecia bonito, pensara, e deveria ser. É que aprendera que do não-consolo pode-se produzir o humano, belo e renovador. Edificante. Necessariamente cotidiano, para todos nós.

— FIM —

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