O Acorrentado – Análise

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NESTE CONTO, a impressionante e escandalosa ineficiência do Sistema Público de Saúde pode ser considerada um dos sintomas que
compõe a doença do protagonista. Corresponde à parcela do adoecimento dos outros, os da não-família: aqueles que não amparam,
não explicam e não consolam.

Se de um lado, a família do menino retraído vive num mundo próprio em que os laços sanguíneos dividem a humanidade em duas categorias, de outro, a desconsideração e a indiferença disfarçadas de boa intenção determinam relações sociais inúteis, esvaziadas, frustrantes e injustas.

Nas referidas relações, os médicos não cuidam, o poder público
não presta assistência, as instituições propagam ideologias e os
vizinhos julgam. O que resulta num assustador efeito em cadeia
que, entre outras coisas, impede a fecundidade das áreas de
intersecção e não materializa a redenção (do protagonista, da família,
dos outros).

Para início de conversa, do ponto de vista do conhecimento
especializado, a gravidade da doença do filho do Seu Apolinário
mereceria, da parte dos médicos, uma assistência especial, domiciliar
e de envolvimento responsável. O psiquiatra deveria atender o Furioso
em sua residência, deveria instruir os familiares na questão
medicamentosa, deveria orientar formulando explicações-específicas(1) e testemunhar, dia após dia, semana após semana, os acontecimentos
e suas implicações.

O médico deveria, como ela, fazer parte. E deveria, em parceria com um(a) psicólogo(a) e um(a) assistente social integrar uma Equipe, desenvolvendo as atribuições que lhe cabe viabilizando as áreas de intersecção.

O que são áreas de intersecção? Considero que sejam “regiões”
oriundas da “aproximação” de diversos tipos de conhecimento especializado
possibilitando a construção de outro modelo compreensivo-
interventivo (porque extrapola considerações tradicionais). E
o atendimento de Arthur é exemplar neste sentido: cada profissional
teria como objetivo fazer parte: individualmente e representando a
Equipe. O que pressupõe que a ação integrada desses especialistas
visa produzir estratégias interventivas cuidadosamente planejadas e
que percorrem “territórios” diversos: os conhecidos, os desconhecidos,
os que-não-serão-conhecidos, os similares e os de-oposição.

(1.) As explicações-específicas correspondem ao ajuste do conhecimento especializado ao contexto em questão.

A riqueza (e o desafio) das áreas de intersecção consiste justamente
em aceitar explicações oriundas de múltiplas áreas do conhecimento
especializado: o médico, por exemplo, considerando as intervenções
psicológicas e assistenciais, e as incluindo em sua proposta
de tratamento. A assistente social, por exemplo, considerando as
intervenções médicas e psicológicas, e as incluindo em seu modelo
de atuação. E assim sucessivamente, num processo ininterrupto de
reavaliações periódicas.

Essa forma de atuar, no caso de Arthur, poderia assistir a família
de modo adequado conseguindo que melhor-convivessem com a
difícil realidade do não-consolo.
Neste sentido, o Conto denuncia que, por mais estranho que
possa parecer, o Acorrentado não faz um tratamento medicamentoso
progressivo, em que o Acompanhamento inclui os desdobramentos, ajustes e reajustes. Pelo contrário, em cada internação, ele é submetido
a diferentes procedimentos e sempre que retorna para casa, fica a
mercê das considerações dos familiares. Que fazem o que querem e o
que podem.

É assustador. E considerando que exista uma brecha entre os indivíduos e as
instituições à qual pertençam: por que os profissionais da área da
saúde têm tamanha dificuldade para atuar em equipe? Por que tanto
medo do risco? Do desconhecido? Do envolvimento afetivo? Da
solidariedade? Eles, uma vez formados, autônomos e atuando, trazem
nas mãos a possibilidade de experimentar, de ousar, de inventar.
Por que não o fazem?

É assustador. Existe ainda, em relação às áreas de intersecção, a possibilidade
da equipe integrar não-profissionais em suas estratégias. Os vizinhos,
as pessoas da Igreja, e tantos outros poderiam, desde que não
atrapalhassem, prestar assistência ou apenas solidariedade à família.
A equipe de profissionais deveria, necessariamente, incluir em seus
objetivos, ações que envolvessem não-profissionais transformando
suas iniciativas em ajuda eficaz (materializado em apoio que gera
esperança).

Na verdade, a aliança entre a equipe e a família do Furioso serviria
para discriminar e selecionar as propostas de auxílio recebidas. E
ainda poderiam, se quisessem, orientar e conscientizar aquelas pessoas
cujo auxílio os beneficia.
Ampliando: as áreas de intersecção, portanto, incluem o conhecimento
especializado, o conhecimento não-especializado-de-senso-
comum e diversos conhecimentos não-técnicos: o religioso, o
trancendental etc. E exigem dos profissionais uma autonomia constituída
de coragem, segurança e humildade: um tipo de conhecimento
não exclui o outro tipo nem o ameaça. Eles são complementares,
se sobrepõe, e se, por ventura, nem uma coisa nem outra, resta a
alternativa da convivência pacífica.

Insisto mais uma vez (e sempre): se por ventura, concepções de
saúde/adoecimento partem de pressupostos irreconciliáveis, do ponto
de vista da operacionalidade(2), não se configura a impossibilidade
da interação. A operacionalidade da parceria justifica, então, a
complementaridade, a sobreposição ou, no mínimo, a convivência.
Ou seja: o que importa para o homem-que-cura é a amplitude decorrente
da postura de aceitação caracterizada pela pluralidade de concepções.

2. As áreas de intersecção, do ponto de vista da operacionalidade, apresentam a possibilidade da compreensão complementar do fenômeno: outro tipo de conhecimento especializado elucida aspectos que o tipo utilizado pelo profissional não faz. Apresenta também a possibilidade de sobreposição: outro tipo de conhecimento (especializado ou não) elucida aspectos do fenômeno que também são elucidados pelo conhecimento do profissional. Por fim, a convivência: a distinta concepção apresenta um tipo de elucidação (especializada ou não) que tem origem noutra perspectiva de produção do fenômeno.

As áreas de intersecção ainda integram naturalmente o desconhecido e o que-nãoserá- conhecido. O que significa que a construção de sentidos onde sentido não há e a presença solidária diante do não-sentido são importantes atribuições do profissional que compõe a interação terapêutica.

É isso. Em relação ao atendimento psicológico, no Conto, o objetivo
dela é fazer parte, aproximando-se. E na proximidade, não-julgar.
Não julgando, orientar. Orientando, se constituir numa referência
para todos da família. Ela é de todos e de cada um. Não exige, não
reivindica, não cria falsas expectativas, não cultiva a indiferença nem
a curiosidade. Está presente na casa ou no hospital e os acompanha
nas consultas com o psiquiatra. Ela se arrisca, visita o quarto escuro,
pede para ser algemada. A moça receptiva consegue fazer parte pertencendo
à não-família. A moça receptiva consegue. E, sobretudo, na relação com Arthur, o seu objetivo é comunicar-
se. Com ele, a moça conversa sempre: quando obtém resposta,
quando não obtém; quando corre risco, quando não corre; quando
o Furioso está agressivo, quando não está; quando sente que deve
tocá-lo, quando sente que não deve; quando está internado, quando
habita o quarto escuro; sempre, sempre, sempre. E consegue resultados.
Ela faz mais: conversa com o psiquiatra, pede explicações, reivindica
direitos. E conversaria com todos e qualquer um. Ela, compondo
a não-família interpela os similares.
Talvez fosse exatamente este o seu objetivo: constituir-se referência
e comunicar-se.

É impressionante.
Passemos a outro tema.
Em relação à família do Furioso três aspectos chamam a atenção:
a indiferenciação, a não-aceitação da loucura e o gosto pelo mórbido.
Como se vê ao longo do Conto, por causa da indiferenciação,
nenhum dos membros da casa do final da rua possui individualidade:
eles formam a família e existem porque desempenham papéis e
funções familiares. O si-mesmo de cada um comporta parcelas significativas
do si-mesmo do outro formando pessoas-família, sem que
exista a menor possibilidade do exercício da singularidade.
Pois bem, o tempo passou e a vida seguiu seu rumo com certa
tranqüilidade até que o caçula enlouqueceu. O que fez com que o
aprisionamento familiar se transformasse em tragédia. A partir de
então, a paz, a alegria e a esperança abandonaram os componentes do
clã de Seu Apolinário e o cotidiano se encheu do não-consolo bafejado
pela violência do horror existente no roteiro misterioso da loucura.
E a experiência familiar da indiferenciação, na loucura, se torna
dramática porque a não-saída torna-se explícita, restringindo por completo
as existências envolvidas. Eles se debatem em coletivo, sofrem
em coletivo, se apóiam em coletivo e resistem em coletivo. E se deparam
com o selado destino de todos: a dor diante da manifestação incompreensível
de uma extrema condição humana: a loucura.

É assustador.
E nenhum deles a aceita. Tentam explicar de diversas maneiras,
dão voltas e mais voltas formulando teorias, desenvolvendo idéias,
gastando energia e tempo com a inatingível elucidação do que – de
fato – acontece com o Furioso. Por quê? Qual a dificuldade extra em
aceitar que ele perdeu o juízo? É interessante porque ao manter indefinida
a identidade da manifestação, não avançam no sentido da apropriação,
da assimilação do significado, da chance de encontrar pequenos
momentos de tranqüilidade resultantes da compreensão da
nova condição.

E mesmo depois de anos de contato com a manifestação, agem
como novatos (surpresos e despreparados). Nesse aspecto, a família
do Furioso não se deixa afetar pelo tempo, não sofre o desgaste do
contato, não se altera após longos e intermináveis anos de convivência
com a loucura de um parente próximo. Por quê? O que insistem
em manter? Acredito que pretendem justamente conservar intacta a
famosa indiferenciação evitando pagar o preço pela criação de referências
não-familiares (que estabeleceria as singularidades).
A indiferenciação parece exercer a função de auto-proteção e
cada um deles se apega a ela como algo indispensável à vida. O que
indica que a não-aceitação da loucura revela um mecanismo de manutenção
da indiferenciação e alimenta o aprisionamento de todos
os membros da família do Acorrentado.

O que, acredito, conduz ao tema da agressividade: o Furioso
agride apenas as pessoas que ama. Sintomático. O que sugere que a
agressividade dirigida para si ou para os outros está conformada à
indiferenciação. Neste Caso, a agressividade é veiculada como descontrole
endossado pela loucura e compreendida como característica
daqueles que pertencem à família, ao si-mesmo compartilhado.
É veiculada e aceita com o carimbo do estoicismo. O que, acredito,
explica muitas atitudes que têm com o filho mais novo: não ministrar
os remédios como recomendado, não “se importar” com os
ferimentos e as dores causadas pela corrente, cultivar a complacência diante dos ataques de fúria, considerar que o amor, o carinho e os
cuidados irão curá-lo etc.
Mas é na arrebentação dos comportamentos enfurecidos do
Acorrentado, que a intensidade da agressividade atinge o extremo,
e, justamente, neste contexto, pode-se pensar na insistência em engolir
pregos e na vontade dele de morrer. Por outro lado, pregos, chaves
e rebocos são expelidos sem danos sérios para o organismo. Várias
vezes, repetidamente.

É assustador e surpreendente.
Como é possível? A agressividade, no ponto extremo, desemboca
no inusitado e Arthur, ao mesmo tempo, mantém-se protegido.
Por quê? Há duas forças distintas aqui? Talvez. A Agressividade
indicando a vontade de morrer e a Auto-proteção garantindo a vida.
Duelo de gigantes, produzindo uma alma dilacerada.
O Conto, neste sentido, é pura comoção:
– uma alma dilacerada, coberta de dor, enraizada na
indiferenciação, agredindo e se auto-agredindo num destino coletivo
de não-consolo (sem compreender e sem comunicar);
– e ainda: uma alma dilacerada, acorrentada num quarto escuro,
a uivar. Num tempo permanente de não-consolo futuro.
E do cerne da agressividade voltada para si, o caçula quer morrer
porque “partes do seu corpo não funcionam direito”. E sabedor de
que o irmão é diferente dele, quer para si o que ele tem: um coração
sadio. Muito curioso: o caçula quer ser igual para apresentar sanidade
e se conseguisse romperia com a indiferenciação.
O que denuncia que a indiferenciação requer funções distintas
em personalidades correspondentes definidas por um único padrão
(o familiar).
O que denuncia que a loucura é de todos. E que para deixá-la,
Arthur deveria romper com o que os mantém vivos, a indispensável
indiferenciação.

Na permanência do Olhar diante da intensidade da manifestação
dos comportamentos do menino retraído, existe ainda a constatação
inequívoca de uma vitalidade ímpar. Coisa que a agressividade reforça.
E que nem os remédios, a corrente ou o afeto dos pais conseguem
conter: Arthur explode na loucura, experienciando a
esquizofrenia na arrebentação de uma brutalidade animal, não mediada,
impossibilitada de comunicação e desprovida da redenção do
choro (manifestação humanizada da imersão da alma em dor).
E é justamente isso o que ela consegue com o Furioso naquele
dia especial: a comunicação humanizada, repleta de sentimentos,
compartilhada, traduzida em choro e no sono apaziguador.
É comovente.

Já o gosto pelo mórbido (que deita raízes no solo-matriz que
forja identidades), aparece como uma esquisitice a mais, numa família
repleta de esquisitices. A paixão pelo cemitério, pela podridão da
carne e pela morte são apreendidas e aceitas como uma peculiaridade,
como algo que cultivam, que os diferencia e que não prejudica ninguém.
É quase uma qualidade, torta evidentemente, mas inofensiva.
Acredito que seja assim mesmo: a morbidez dá a eles um lugar no
mundo, os diferencia, os separa dos da não-família. E os destaca, de certa
forma. O que faz com que pertençam ao mundo, e isso é positivo; e que faz
com que cultivem o lado obscuro, fétido e podre da existência, o que
provoca repulsa nos componentes da não-família. O clã de Seu Apolinário,
com a morbidez, cultiva o auto-isolamento, obtém prazer com a podridão
e se banha na esquisitice para transitar pelo mundo de todos.

O final do Conto é tão surpreendente como todo o restante: do
não-consolo gerado pela condição extrema de loucura existe um
momento de ruptura e de redenção, para todos. A presença dela abre
espaço na indiferenciação e a salvação se insinua através do consolo
esperançoso do contato com o não-eu.

E transforma o cotidiano aprisionado pelo destino doloroso num
momento de rara esperança.

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