Brasilidade

“O brasileiro é um feriado.” Nelson Rodrigues.

De vez em quando, não se sabe exatamente como nem por que, acontece o encontro de uma Nação com o seu povo. Nesse instante raro, o verso e o reverso da história de uma Coletividade emergem como as partes constituintes dos cidadãos e seus Grupos.

E, neste carnaval de 2019, tivemos o privilégio de compor um desses momentos: foi quando a Estação Primeira de Mangueira, desfilando na Marquês de Sapucaí, apresentou o Samba-Enredo: História pra Ninar Gente Grande.

Já no primeiro verso, a Escola diz a que veio, marcando a cadência e a densidade do Grande desfile:

Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões

São verde e rosa, as multidões

Usando a própria tradição e fazendo uso de versos geniais, o carnavalesco estabelece uma narrativa sobre a História do Brasil que expõe a verdadeira História do Brasil.

E não há novidade na ideia que permeia o desfile: nós todos sabemos que existe uma História oficial, com os seus protagonistas e heróis, que está presente nos livros e que é ensinada nas escolas. E que existe também outra História, não oficial, com os seus protagonistas e heróis, que não aparece nos livros e não é ensinada nas escolas.

O que a Estação Primeira fez, então, foi mostrar a História do Brasil do ponto de vista não oficial em que índios, negros e pobres estão em permanente embate com as classes dominantes na busca pelos seus direitos.

E aqui, a meu ver, reside o poderoso efeito do Desfile: a brasilidade é construída exatamente no embate, no confronto, nessa luta. A História da Nação foi gerada nesse processo: os valores que eu e você, todos os dias, manifestamos em nossas relações cotidianas são resultado desse confronto e seus desdobramentos.

Dizendo de outro modo: nós todos, eu e você, sem exceção, pertencemos a esse caldeirão, viemos do mesmo barro, somos farinha do mesmo saco. E ao longo da História construímos a opressão, o sofrimento, a resistência, a conquista dos direitos humanos e buscamos a liberdade, com esperança.

Há muito não existe mais a Pureza na Brasilidade, misturamos, somos misturados, contraditórios, responsáveis e irresponsáveis, fortes, malandros, geniais e “vira-latas”.

Pode ser que você (e a sua família, ou seu grupo) tenha sofrido mais ou menos, que tenha resistido mais ou menos, que tenha se divertido mais ou menos, que apresente mais ou menos contradições. Pode ser. Porém, não existe a Pureza na Brasilidade nossa de cada dia. Assim como não existe a Verdade como propriedade de determinados Grupos e a completa ausência dela entre os demais cidadãos.

Em situações adversas se faz necessário escolher o lado em que desejamos estar, não porque a Verdade transformou-se em propriedade, mas porque valores e direitos devem ser conquistados e precisamos avançar na conquista da igualdade, para todos.

Os versos do Samba explicam:

O avesso do mesmo lugar

Na luta que a gente se encontra

E qualquer que seja o contexto (ou a época) haverá sempre o avesso do mesmo lugar porque somos um Povo, uma Nação.

E, a Estação Primeira, ao mostrar o avesso no Desfile, usou a magia da arte para realinhar coordenadas, redimensionar fatos, fazer justiça, relembrar e lavar a alma de todos, em todas as épocas. Ou seja: a cadência do samba mostrou ao cidadão a sua Brasilidade de rosto único.

Ora vejam: não somos um povo dócil, nem amigável, como diz a lenda. Também não somos apáticos, nem preguiçosos, como outros disseram. Somos resistentes, criativos, divertidos, malandros e corruptos, pobres, miseráveis e competentes, tão competentes que nem acreditamos.

E somos tão jovens. Qual a idade mesmo? Quinhentos anos, com Cabral. Mas e tudo o que existia antes dele? Somos mais velhos, então.

Ah, e gostamos de criticar e menosprezar quem somos: “o que esperar de um país em que…?” É assim: basta que algo ocorra, coisa simples ou grave, todos dizem ou pensam ou sentem: “o que esperar de um país em que dois presidentes foram presos?” Ora, mas o país é você! Sou eu! Os vizinhos, o bairro, a escola de samba, todos os tipos de gente…

E a escola de samba desfilou, e cantou e dançou e celebrou a Brasilidade reunida no mesmo espaço-tempo, que se manifestou, e que se viu de fora, num samba, numa festa, na exuberância de corpos e rostos, na emoção colorida e alegre do ritmo preciso e de nota dez.

E aí sim: “o brasileiro é um feriado”. Obrigado, Estação Primeira!

Whatsapp