Não é não
Na peça teatral Helenas, quando uma paciente com Transtorno Dissociativo de Identidade se encontra com a estagiária Mariana, numa Clínica-Escola de psicologia, acontece o encontro entre sete mulheres.
Helena está doente de amor e se dividiu em seis mulheres para não matar o homem que ama, portanto, um dos temas tratados por essas mulheres é o que constitui a mulher e a sua relação com os homens.
Há um diálogo entre a Helena-Normal e Mariana que reproduzo aqui:
MARIANA: Me diga com sinceridade Helena, o que é uma mulher decente?
HELENA NORMAL: Ora, você sabe muito bem!
MARIANA: Eu não sei, me diga.
HELENA NORMAL: Mas moça, desde que o mundo é mundo todos sabem.
MARIANA: Eu faço parte do mundo e quero saber, me diga.
HELENA NORMAL: É uma mulher honesta, dedicada, que ama seus filhos e o marido acima de qualquer outra coisa. É isso, sendo prática, milenarmente prática.
MARIANA: Tá, você definiu as mulheres a partir da relação com os homens…
HELENA NORMAL: E tem outro jeito de ser mulher?
MARIANA: Talvez não…
Pois bem, o que a mulher deve ser está dito: honesta, dedicada, que ama seus filhos e marido acima de qualquer outra coisa.
Nessa resposta, a mulher é definida através da relação com o homem e as duas questionam se é possível defini-la a partir de outra referência. Ou seja, a mulher existe para procriar, cuidar dos filhos e do marido, se dedicar a eles: a mulher constrói o Lar e o mantém, o que garante a sobrevivência da espécie e a manutenção dos grupos/sociedade.
Para isso, para que ocorra: a mulher deve se sacrificar e viver em função do amor. Ela deve emprestar o seu corpo, condicionar a sua sexualidade e apoiar o marido. Sempre foi assim.
O curioso é que olhando, de trás para frente, a História dos Gêneros parece que a mulher sempre quis algo mais do que lhe foi atribuído.
A espécie humana e, consequentemente, as sociedades humanas, dividem o ser humano em masculino e feminino, lhes atribui funções e tarefas distintas e a parte que cabe à mulher é a que me referi acima.
É importante ressaltar que as mulheres sabem do seu papel e da sua importância para a manutenção da espécie e para a educação dos filhos, se identificam com essas funções e se realizam nessas atividades, porém, parece que sempre flertaram com outra possibilidade: a de existir por elas mesmas.
E, ao longo de milênios, vêm construindo essa materialidade.
Hoje, quero apresentar a Tese de que as mulheres conseguiram o que pretendiam: elas existem por si mesmas. E o Não é Não representa o degrau que ainda faltava nessa conquista.
Alguns marcos históricos indicam/permitiram/construíram a conquista: o primeiro deles foi a inserção no mundo do trabalho, que ocorreu durante a Primeira e a Segunda Guerras mundiais: período em que os provedores dos lares (os homens) foram retirados do convívio familiar e colocados à frente das batalhas. Nesse contexto e sem alternativa, as mulheres passaram a assumir os negócios da família e a posição dos homens no mercado de trabalho.
Com o passar do tempo, o trabalho feminino tornou-se uma forte referência social, que hoje, produz uma cobrança direta atrelada à valorização pessoal, associada à capacidade laboral, intelectual e geradora de renda. O que impacta, diretamente, numa forte mudança cultural relacionada aos casamentos tardios, à diminuição da natalidade e do desejo pela maternidade.
O segundo evento histórico acontece em 1960 quando a ciência desenvolve a pílula anticoncepcional possibilitando às mulheres a prática da sexualidade sem o fantasma da gravidez indesejada. O que lhes deu a posse do próprio corpo diante da determinação biológica: elas poderiam usufruir da sexualidade, ou seja, buscar no sexo apenas o prazer.
E qualquer palavra ou reflexão que possamos fazer será insuficiente para expressar a magnitude dessa conquista. Pois, driblar as determinações biológicas significa a aquisição de um conhecimento capaz de alterar o modo natural do funcionamento orgânico.
O que significa co-criar o modo de criar novos seres humanos. E que libertou as mulheres desse condicionamento flexibilizando o processo e permitindo a escolha. Como escolher diferente daquilo que a Natureza determinou?
Pois é!
A sexualidade reprimida das mulheres, resultado do condicionamento necessário para a construção do Lar e da manutenção dos grupos sociais, foi demovida e alterada.
O terceiro marco histórico se refere a um dos institutos universais do mundo jurídico: o divórcio. Atualmente, com exceção dos países de religião islâmica, o restante, que possui cultura ocidental, tem em seu ordenamento jurídico a figura do divórcio.
No Brasil, como se sabe, depois de muita resistência e várias derrotas legislativas, a emenda constitucional, do Senador Nelson Carneiro, foi aprovada no Congresso Nacional, em 28 de junho de 1977. No inicio, era possível se divorciar uma única vez, e também era necessário o prazo de cinco anos de separação de fato para o divórcio direto e de três anos para o indireto (com conversão).
O desquite, na verdade, só trocou de nome para separação judicial. Depois, o prazo de separação de fato foi reduzido para dois anos – para a concessão do divórcio direto e de um ano para a conversão da separação judicial em divórcio.
O casamento desfeito.
Mas se foi Deus quem uniu, o homem não deveria interferir. Pelo menos é o que dizem as religiões.
O Direito, no entanto, ramo do conhecimento especializado, legitima a separação conjugal permitindo às mulheres o rompimento com os laços do matrimônio.
Mais uma revolução.
A mulher pode, enfim, com o aval da sociedade, optar por uma vida em que assume sozinha a continuidade da existência após o término do casamento: com filhos ou sem eles, o matrimônio é destituído da sua característica atemporal: até que a morte os separe.
Desse modo, aportamos ao final do século vinte: as mulheres inseridas no mercado de trabalho, donas do próprio corpo e capazes de descasar.
Se considerarmos que há milênios essa realidade esteve inalterada, mesmo em contextos e temporalidades distintos, em apenas um século, as alterações vieram para modificar de forma estrutural as relações entre a mulher e o homem.
Porém, a meu ver, os eventos do século vinte, apesar de extraordinários, não conseguiram proporcionar para as mulheres uma referência para a constituição do feminino sem os homens.
Os eventos do século passado possibilitaram que as mulheres se separassem dos homens, mas faltava ainda a derradeira conquista: a imprescindível validação da existência feminina por ela mesma.
O que, a meu ver, aconteceu recentemente com o Não é Não!
A proposta do Não é Não surge com o poder das mulheres de determinar o que deve ou não acontecer nos comportamentos afetivo e sexual entre homens e mulheres. Ou seja, as mulheres estabelecem o limite, demarcam a linha vermelha, assumem o protagonismo e afirmam suas concepções. O que é extraordinário porque socialmente recebem validação e colocam em prática os novos termos.
A minha Tese então é de que o Não é Não significa a conquista que faltava para a existência das mulheres sem a referência masculina. Elas existem por si mesmas, apenas porque existem. Existem manifestando a própria existência sem qualquer obrigação biológica, moral, religiosa, social, ideológica.
A atriz Cate Blanchet, numa entrevista sobre o assunto, disse uma frase que considero emblemática: “estar vestida assim, não significa que eu queira transar com você”. Ou seja, “eu me vesti desse modo não para chamar a sua atenção, não para despertar o seu interesse, não para entrar no seu radar, eu me vesti assim porque eu quis, porque eu gosto, porque me sinto bem; não tem nada a ver com você”.
Agora sim as mulheres podem existir sem a referência do masculino, podem estar no mundo a partir dos critérios que elas definirem.
Essa é a minha Tese.