O ACORRENTADO – Parte II

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– O destino-ação

Ele, quando acordou, estava no hospital e a primeira pessoa que viu foi sua mãe. D. Marieta estava ao seu lado e via-se que tinha chorado. Ao perceber que o filho recobrara os sentidos, abraçou-o dizendo que estava tudo bem. “E o Arthur? Como está? Onde está?” “E o prego que engoliu, contaram para o médico?” “Está internado, filho, num hospital psiquiátrico; o seu pai está com ele.” “Hospital psiquiátrico, mãe?” “Mas, por quê?” “Os médicos disseram que ele precisa de tratamento, está doente, com esquizofrenia.”
“Esquizo… o quê?” “Esquizofrenia, será que é isso? Eu pedi para escreverem aqui, eu sabia que você ia perguntar.” D. Marieta tirou um pequeno papel da bolsa e mostrou ao filho. Era isso mesmo, lá estava escrito: esquizofrenia. “O que é isso, mãe?” “Eu não sei, disseram que é uma doença em que a pessoa perde o juízo”. “Estão dizendo que o meu irmão é louco?” Perguntou Igor com uma voz que mais parecia um gemido. A dor que sentiu ao pronunciar a palavra “louco” fez sua alma encolher. Uma pressão veio de baixo para cima e sua alma foi lentamente pressionada até ficar retorcida. Igor fechou os olhos, apertou a mão de sua mãe, vendo seu destino traçado: daí por diante, o segurança-folguista, seria dono de uma alma retorcida, inconsolável.

– O primeiro encontro

Seu Apolinário e D. Marieta arrumaram-se para buscar “orientação adequada” no lugar em que as devotas indicaram. Era uma sexta-feira, de manhã, e ele se arrumou para a ocasião vestindo sua melhor roupa: escolheu uma calça social cinza, uma camisa azul marinho bem passada, e antigos sapatos pretos, comprados há cerca de dez anos, para o casamento da filha.
E quando saíam, ao olhar para sua mulher, verificou que vestia roupas do dia-a-dia e não compreendeu. O coveiro não quis comentar porque sabia que Marieta, no fundo, odiava tanto quanto ele essas visitas em que determinavam o que teriam que fazer. Iriam aproveitar a saída para comprar um liquidificador e debater sobre outras coisas enquanto caminhavam até a Clínica; os dois gostavam particularmente de andar porque apreciavam a movimentação do mundo que lhes fornecia estímulos, novidades e cores vivas.
O encontro foi surpreendentemente “simpático”, ele definiu depois, surpreso. A moça fez as perguntas que todos faziam, mas ouvia com atenção concentrada, demonstrando um ar de simplicidade que despertou a curiosidade de Seu Apolinário. Ele nunca compreendeu o interesse dessa gente pelo seu menino. O que tinham a ver com isso? O que uma moça como aquela queria? O pai do-que-não-se-explica sabia que apenas pais e filhos deveriam se interessar uns pelos outros; “apenas a família deve se interessar por ela mesma, sem família ninguém vive”, repetia em pensamento.
Ao sentar-se diante dela e ao verificar seu ar de receptividade, Seu Apolinário perguntou-se, pela primeira vez, se o seu caçula representava uma ameaça para as pessoas. Será que é por isso? Será que têm medo dele? No entanto, ao repassar os últimos seis anos, constatou que não agredira nenhum estranho: o seu menino-retraído somente batia neles, nas pessoas da família. Isso, Seu Apolinário não explicava, Arthur agredia as pessoas de quem gostava: era desse jeito, nunca batera em alguém que não amasse.
O que também foi curioso nesse encontro é que, durante a conversação, ao falar de Maria Alice, percebeu que sua filha não participava do que acontecera com Arthur. Ela se casara, dez anos atrás, e tivera um filho e vivia outra vida; estava, portanto, isenta do convívio com as dificuldades do antigo lar. Ao falar que a sua única filha-mulher escapara do-que-não-se-explica, contou que ela apanhava do marido e que tentava se separar sem obter sucesso porque sempre retrocedia. Ao concluir a frase, desatou a rir: riu, riu, riu.
Então, D. Marieta teve que intervir. Ela tomou a palavra, levantou-se e, com gestos exagerados, explicou que a filha brigava com o marido e alojava-se em sua casa com o neto, de oito anos. Acolhida, Maria Alice jurava que não queria mais saber do “cafajeste”, que iria refazer sua vida, que arrumaria emprego. Não passava uma semana e reatava, levando o filho consigo. Não passava dois meses e reaparecia, toda machucada, roxa, com alguns pertences e pouca roupa. Era mesmo interessante porque a permanência dela nunca coincidia com a permanência de Arthur entre eles.
E da última vez em que se instalou, Igor lhe deu um ultimato: se reatasse, deixaria Gustavo morando com eles; o menino não agüentava mais as brigas dos pais, por esse motivo pedia para ficar. Maria Alice deu de ombros e disse que isso não aconteceria porque preferia morrer a ter que se deitar com o “cafajeste”, mais uma vez. Ela voltou, Gustavo não. E o menino adaptou-se tão bem ao funcionamento da casa que, na primeira crise de Arthur em que estava presente, voou para cima dele para ajudar Igor a imobilizá-lo: era assim, os homens de sua família tinham uma função diante da agressividade do Furioso: deveriam imobilizá-lo.
Seu Apolinário ainda ria quando ela perguntou o que achavam que seu filho mais novo tinha. Era a primeira vez que alguém entrava nesses pormenores: “eu acho que é manha”, respondeu entusiasmado. E repetia, “manha, doutora. Quando ele está no hospital, come com as próprias mãos e toma banho sozinho. Lá em casa, temos que dar comida na boca e temos que dar banho, também. Por que faz assim? Ele é esperto, doutora. O meu menino-retraído é esperto, sabe das coisas.”
Nessa hora, D. Marieta começou a falar alto, dizendo frases incompletas e retomando os gestos exagerados. O marido não se incomodou e continuou sua argumentação; ela levantou-se, insistiu no assunto sobre Maria Alice, depois demonstrou preocupação com Igor, depois disse que, em sua casa, sempre fizeram reuniões para discutir os problemas e Arthur permanecia isolado, sem participar. Acontecera algo também quando teve que ir para o Exército: foi dispensado, mas voltou assustado e não disse o que ocorrera. A partir dessa informação, Seu Apolinário acompanhou-a nos assuntos e os dois se perderam em datas, confundindo as coisas.
Cinco minutos depois da confusão instalada, emudeceram quando ela declarou que gostaria de conhecer Arthur. “Atualmente, nosso menino está internado, doutora. E daqui a quinze dias, receberá alta.” Seu Apolinário falou, com emoção na voz. A moça queria vê-lo tanto no hospital quanto em casa, se fosse possível. Ela pedia, com educação. Foi então que o pai do-que-não-se-explica sentiu vontade de contar, de simplesmente falar: “a doutora sabia que nós o amarramos em casa, quando fica nervoso? Nós o prendemos numa corrente.”
A voz de Seu Apolinário traduzia, através de um tom recém-inaugurado, uma confiança nunca estabelecida: o coveiro jamais havia contado para alguém o que faziam em casa. Todos sabiam, ou porque viram ou porque alguém dissera, mas não de sua boca. O mundo sabia por que não conseguia dispensar o mundo, pois se dependesse de suas palavras, dispensaria não dizendo. Aquilo só cabia a eles, às pessoas da família.

– A internação

Igor tirou quinze dias de licença para se recuperar da luta com o irmão: três costelas quebradas, um dente quebrado, muitos ferimentos e um adormecimento pelo corpo. Ele preferia não ter que ficar sem trabalhar porque teria motivos para se distrair e assim que conseguiu andar, foi visitar o irmão, acompanhado de Seu Apolinário. Pegou sua moto, acomodou seu pai, verificou se o capacete estava bem ajustado, colocou o seu e partiram.
Levaram bolo, um pote de doces e alguns salgados; o vigilante não sabia o que encontraria, e temia a realidade com a qual pudesse se deparar. O hospital era longe, e isso, de certo modo, o preparou: nas curvas da rodovia, ele ganhava tempo e coragem; o irmão do Furioso, no trânsito, além de coragem, ganhava dignidade. Os dois foram recebidos com cordialidade por uma enfermeira, que os conduziu a determinada ala do hospital, a masculina, do lado direito de quem entrava. Esta ala era composta por dois quartos com quatro camas cada um, uma pequena sala de enfermaria, um corredor com uma mesa e oito cadeiras. Em cima da mesa, uma televisão.
Igor precisou olhar para Seu Apolinário para prosseguir. Logo na entrada, havia uma pequena varanda, com dois bancos de cimento e uma pequena área para tomar sol. Eles entraram no primeiro quarto: das quatro camas, três estavam ocupadas com homens dormindo, que tinham a cabeça coberta por mantas de cor cinza. Seu Apolinário chamou baixinho, ninguém se mexeu. Ele repetiu: “Arthur, meu filho”. Nenhum movimento. Então, Igor disse numa voz forte: “Arthur, seu malandro. Estamos aqui.”
Arthur descobriu a cabeça, sentou-se na cama, deu um sorriso e exclamou: “Meu pai veio!” Estava mais magro, é certo, mas nada que justificasse aquilo tudo, pensara Igor. O seu coração encheu-se de alegria e deixou que o pai se aproximasse primeiro; o mais novo segurou, com força, a mão de Seu Apolinário e falou coisas incompreensíveis. Parecia que via o que não viam, e falava de um mundo estranho, de perseguições e mentiras. O motoqueiro estacou, aquele não podia ser o seu querido irmão. Não podia.
Depois, o Furioso deu para falar sobre sexo, e mostrou o pinto duro para o pai, que não sabia o que fazer. Depois, assim, como num passe de mágica, retornou para esse mundo e perguntou sobre D. Marieta, sobre a moto e quis saber se o bar havia voltado a funcionar. Igor ficou aturdido. O que significava tudo aquilo? Será que seu irmão fingia, zoava com eles, tirava um “barato”? No entanto, havia uma falta de brilho no olhar que o preocupou, será que estava mesmo doente? Será que aquilo era uma prova da esquizofrenia? Nisso, a enfermeira entrou, conversou um pouco e explicou que estava reagindo bem ao tratamento; provavelmente receberia alta para continuar se tratando em casa.
“Isso tem cura?” Perguntou Seu Apolinário. A mulher ajeitou o punho da roupa, meneou a cabeça e respondeu: “temo que não, mas conversem com o médico, ele explica melhor.” Saiu. Tentaram falar com o médico, tiveram que esperar, estava noutra ala. Por um instante pensaram em ir para casa, não queriam saber de mais nada. No entanto, Igor lembrou-se do prego que o irmão engolira e queria saber o que fora feito em relação a isso. Temia que algo grave pudesse acontecer. “O prego, pai; o prego.”
Meia hora depois, o médico acabou por chamá-los.“O senhor é o pai do Arthur? Sentem-se aqui, por favor”. “Em que posso ajudá-los?” Os dois permaneceram em silêncio, o médico aguardou. Seu Apolinário olhou para o chão, Igor olhou para o pai. “Foi a primeira vez que aconteceu?” Fizeram que sim com a cabeça. “O nosso diagnóstico é esquizofrenia. Uma doença em que a pessoa vive num mundo diferente do nosso, vê o que não vemos, ouve vozes e pode se tornar agressivo. Precisa tomar remédio, precisa de atenção especial e alguns médicos indicam psicoterapia, se o paciente tiver condições de fazer.” O silêncio permanecia. “E o prego, doutor?” Perguntou Igor. “Ah, o prego! Vou mostrar.” O médico dirigiu-se até um armário de ferro, abriu uma de suas partes e retirou um pacote. “Vejam.”
Havia cerca de uma dúzia de radiografias. Elas mostravam a trajetória do prego dentro de Arthur. A fisionomia dos dois ficou pesada, Seu Apolinário disse: “Santo Deus!” Igor tossiu. “Por mais estranho que possa parecer, o prego está descendo e nós estamos aguardando para ver o que acontece. Não causou nenhum problema até agora. Eu já vi muita coisa inexplicável, querem saber? Talvez esse prego saia naturalmente.” Os dois olharam espantados para o médico. “Será?” Pronunciou Igor. “Ele só terá alta depois que o prego não estiver dentro dele, isso eu garanto a vocês.”
O pai e o irmão não quiseram continuar a conversa. Agradeceram ao médico e saíram. Estavam aliviados, parecia que as notícias eram boas. Parecia. O que desejavam era levar Arthur, queriam dar-lhe carinho porque carinho é o melhor remédio que se pode ter. Pai e filho estavam convencidos de que tudo não passaria de uma fase, de um momento difícil, quem não os tem? Ao pilotar sua moto de volta para casa, Igor ousou sorrir depois de tantos dias; como era bom ter esperança…

– O retorno

Sessenta dias depois do primeiro surto, Arthur estava de volta. O irmão o trouxera de moto e alguns vizinhos formavam um pequeno aglomerado em frente ao bar: quem não estaria ansioso para colocar os olhos no autor de uma proeza inexplicável? É claro que vieram ostentando boas intenções e ares solidários, mas no fundo, Seu Apolinário sabia que se tratava de curiosos-indiferentes. Eram os outros, a não-família, os de fora.
D. Marieta estava ansiosa, fizera um almoço caprichado e vestia uma roupa bonita. Ela pediu que Seu Apolinário fechasse o bar e os dois não se cansavam de consultar o relógio. Os irmãos chegaram, enfim. Igor tirou o capacete, via-se orgulho em seu olhar: tudo certo, nenhum transtorno, tranqüilidade à vista. Ele ajudou Arthur a descer, encarregou-se da sua mochila e comoveu-se com os abraços e os beijos que seu irmão recebia dos pais. Os outros se aproximaram, olharam bem, desejaram saúde e paz e partiram. Enfim, a solidão em família.
Assim que entrou em casa, o primogênito pediu a todos um minuto de atenção. Abriu a mochila do irmão e retirou um pacote amarelo onde estavam as radiografias tiradas no hospital. Em seqüência, uma a uma, foi mostrando a descida do prego, até que… E fez suspense: nada mais havia. O prego fora expelido com as fezes. Os aplausos vieram e trouxeram a alegria. A mãe do Furioso mal podia acreditar: era sorte, muita sorte.
O almoço delicioso de D. Marieta fez sucesso, Igor falava de muitas coisas e Arthur apenas o ouvia, em silêncio. Era raro que a espontaneidade e a alegria emoldurassem o tom daquela casa, porém, num dia tão especial não poderia ser diferente. Seu Apolinário contou de um enterro no cemitério, em que a mulher e a amante do morto se pegaram de tapa, rolando no chão, rasgando a roupa, berrando palavrões com vontade; todos riram. Ele detalhou a cena de tal modo que até Arthur ria, o almoço chegara ao ponto alto.
A tranqüilidade durou cinco dias. Eles esqueceram de dar os remédios ao mais novo, que voltou a ficar agitado e a falar palavras sem sentido. Seu Apolinário achou então que era melhor dar-lhe os remédios e deram três tipos de uma vez. No começo, Arthur tomava a medicação sem oferecer resistência, depois começou a cuspir os comprimidos e o clima ficou tenso. Igor teve a idéia de amassá-los e colocá-los no suco. Assim fizeram.
Duas semanas depois, outro surto. Arthur estava no quarto quando começou a dar socos na janela; machucou a mão, quebrando o vidro e xingou os vizinhos dizendo obscenidades. D. Marieta acudiu e levou um soco na nuca, caindo imobilizada, e ao ver sua mãe estendida, Arthur gritava: “Matei minha mãe!” “Matei minha mãe!” E saltava e batia no peito e ria e transformava o riso em uivo. Depois foi a vez de Seu Apolinário, um soco na boca do estômago e o nocaute. “Matei meu pai!” “Matei meu pai!”
Ao ver os dois estendidos e inertes, o Furioso silenciou e foi para um canto do quarto permanecendo de pé, virado para a parede. Nessa hora, Igor chegou apavorado, vindo do bar e trazendo nas mãos uma corda. Sem pensar, amarrou as mãos e os pés do irmão. Fez um nó perfeito, colocou Arthur sentado na cama e foi socorrer os pais. Correu até a cozinha e trouxe gelo esfregando na nuca e na testa deles. Deu certo, recobraram os sentidos. “Foi só um soco”, Seu Apolinário falou, “nada mais.” “Ele se acalmou?” Perguntou a mãe. “Eu cheguei aqui e o vi encostado na parede, quieto.” E foi assim que descobriram que a imobilidade o acalmava, era a primeira vez que conseguiam interferir no comportamento do Furioso.
Decidiram que o manteriam amarrado. Assim poderiam controlá-lo melhor. Também decidiram que iriam tirar a janela, vidro no quarto era pior que arma. Foram chamar um farmacêutico, que examinou a mão de Arthur, passando-lhe alguns remédios. Esses remédios foram ministrados com gosto, tinham utilidade e função e a mão ia sarando, sarando, sarando. O farmacêutico viu o moço amarrado e não gostou, falou que era desumano; prometeram que o soltariam.
Seu Apolinário e Igor tiraram a janela. O quarto ficou escuro. O Furioso permaneceu imóvel por três dias e D. Marieta teve que dar comida em sua boca, caso contrário, não comia. E precisou ainda levar um penico para que seu menino fizesse as necessidades, senão fazia na roupa. E assim foi, dia após dia, semana após semana: Arthur amarrado, num quarto escuro, quieto, sendo alimentado pela mãe.
Igor era o responsável pelo banho do irmão e, duas vezes por semana, preparava-se para o arriscado trabalho. Levava-o amarrado até o banheiro, desatava o nó dos pés, lavava a parte de baixo primeiro, depois amarrava. Se demonstrasse calma, continuava: desatava o nó das mãos e concluía o serviço. Depois o amarrava novamente e o enxugava. Levava umas três horas executando a tarefa porque conversava com o irmão, sentava-se ao seu lado, no chão do quarto ou na porta do banheiro e puxava uma conversa. Falava sozinho quando Arthur não manifestava qualquer reação e enchia-se de alegria quando o irmão correspondia.
Assim, de banho em banho, até se esquecia do diagnóstico de esquizofrenia. Havia um jeito de conviver com o caçula, bem ou mal conseguiam. Então, num desses banhos, distraiu-se mais que de costume e Arthur começou a bater a cabeça na parede. O embate reiniciou e o segurança tentou impedir que se machucasse, teve a idéia de colocar o capacete no irmão e se arrastou para alcançá-lo. Nisso, o Furioso pegou um molho de chaves que caíra do bolso direito da calça e o engoliu. Igor soltou um grito, não acreditou no que acabara de presenciar.
Aturdido e sentindo-se traído, desfechou um soco tão certeiro que o filho mais novo não conseguiu se levantar. D. Marieta chegou assustada, “chame uma ambulância, ele engoliu um molho de chaves, mãe”. A ambulância veio, levou o enfermo, a vizinhança ficou sabendo, Seu Apolinário foi avisado e o motoqueiro entrando em seu quarto, fechou a porta e chorou.

– O desconsolo

A doença vencia. Se é que se tratava de uma doença. A esquizofrenia vencia, pensava o prestimoso irmão. E não vencia apenas porque mantinha Arthur aprisionado a um mundo estranho, vencia porque roubava de todos, naquela casa, a esperança de dias melhores. Igor vivia para isso, não tinha namorada, não tinha amigos, não tinha futuro. Tinha apenas a moto e a função de derrubar o Furioso, de neutralizar seus ataques. Tirou os-óculos-fundo-de-garrafa, olhou no espelho e viu um homem bonito. Era bonito, dizia para si. Podia arrumar uma namorada e se casar, sair dali. Mas deixar seus pais sozinhos!? O que fariam com o Furioso? E se algo definitivo acontecesse? Ele não se perdoaria.
Acabou achando graça da situação ao pensar no contato com alguma moça que despertasse seu interesse: “oi, prazer, eu sou irmão do Furioso, quer namorar comigo mesmo assim?” E riu. “Quem quer casar com o irmão do Furioso?” Parecia a Dona Baratinha, repetindo: “quem quer casar com a Dona Baratinha, que tem dinheiro na caixinha?” “Quem quer casar com o irmão do Furioso, que tem uma moto novinha?” E continuou a rir. “Será que nunca seria noivo? E se existisse uma moça disposta a conviver com o Furioso?” Igor gostava dessa idéia, mas sabia que era ilusão, pois nenhuma estranha aceitaria aquele destino. Nenhuma.
Em suas noites insones então, tratou de conhecer a esquizofrenia. Comprou alguns livros e leu sobre o assunto. Logo percebeu que ninguém afirmava com certeza quais eram as causas da doença, isso o irritava. Como pode? Fazem remédios, dão nome, pesquisam e não sabem. É ridículo. São inúteis. Incompetentes. A informação de que há indícios de um componente genético, não o assustou. Não temia a loucura, nem achava que seu irmão fosse louco de verdade. Era diferente apenas: calado, quieto, sem amigos e agora, nervoso. Valentão. Mas Igor era mais valente, e mais forte, e não perdia o juízo.

– O componente genético

Seu Apolinário, quando ouviu sobre o componente genético, ficou cabreiro. Sempre soube que tinha responsabilidade no que acontecera com seu filho mais novo. “Todo pai sabe disso, não é doutora?” Falou com a moça-receptiva, no dia em que foram visitar Arthur no hospital, e continuou: “eu vou contar para você uma coisa que nunca contei para ninguém. Uma vez, sonhei que estava caindo de um avião e, antes do avião começar a cair, reparei no céu, que estava muito azul. O avião, querendo cair, voava então sobre uma água suja, barrenta e mortal; e se caísse nessa água, eu poderia morrer. Eu nunca andei de avião, mas sabia que era a mesma sensação: a sensação real de uma queda de avião”.
“Eu me senti muito mal e, quando acordei, tinha perdido a memória. Eu não me lembrava mais da senha do banco, nem das datas de aniversário dos meus filhos, nem de qualquer outra data. Penso que foi minha pressão que subiu possibilitando o sonho e a perda de memória. Tomei o remédio para a pressão e me afastei de todos para não perceberem que havia perdido o juízo. Aos poucos, fui lembrando das coisas, algumas. Mas, olha, nunca mais voltei a ser o mesmo. Escondi isso das pessoas, porque não gostaria que pensassem que temos dois doidos em casa, mas, foi isso que aconteceu com o meu menino, doutora. Foi isso. Só que ele não mais se recuperou.”

– Relacionamentos Interpessoais Desordenados

Quando Igor passou do componente genético para os relacionamentos pessoais desordenados, não sentiu apenas raiva do que lia, sentiu desprezo. Ele demorou para compreender, depois concluiu que estavam falando dos familiares dos esquizofrênicos: do pai, da mãe, dos irmãos, enfim, de quem criou e cuidou da pessoa doente. Olhou para sua família e avaliou como viviam: nada demais, muito amor, preocupação; talvez, amor em excesso, um tanto misturado, mas sincero. Isso causa doença? Isso transforma um cara quieto em Furioso? Desde quando a sinceridade do afeto provoca dor e desespero? Ou cria um mundo à parte?
E da raiva impotente, sentiu uma dor aguda, gemeu. Chorou, chorou, chorou. O pior era não saber o que fazer, era não conseguir as pistas, permanecendo na ausência, eternamente refém do desconhecido. Enquanto remoía a dor e o ódio, lembrou-se de algo curioso: sua mãe dissera, numa época, que Arthur, depois dos dois anos de idade, não mais chorou. Era verdade sim, não se lembrava de seu irmão chorando. O que significava essa informação? Toda criança chora, é normal, e por que o Furioso não chorava?
Seu irmão também nunca adoecera. Disso, D. Marieta se gabava, pois nunca precisou levá-lo ao médico. Ele não gostava de estudar, é certo, não conseguia concentrar-se nos estudos, parando, portanto, na sétima série; tanto que criaram o bar, na frente de casa, para que tivesse uma ocupação, para que não ficasse ocioso. Seu Apolinário temia que seus filhos se envolvessem com drogas, e faria qualquer sacrifício para livrá-los desse caminho. De namorada ou do interesse por alguma menina, o Furioso nunca falara. Das reuniões de família não participava, ficava sempre em um canto da cozinha, apenas ouvindo. Amigos não tinha, era sozinho. Isso causa esquizofrenia? Isso indica esquizofrenia? E como é que se desfaz?
Igor lia e relia o livro sobre esquizofrenia e parecia que falavam de tudo menos de suas vidas. Outra informação difícil de ser compreendida era como os medicamentos podiam alterar o comportamento de alguém; seu irmão tomara várias vezes e de nada resolvera. E o nome dos remédios? Nunca vira coisa tão estapafúrdia, alguns eram impronunciáveis; Seu Apolinário referia-se a eles pela cor. Depois, veio a parte da psicoterapia, mas o motoqueiro não quis nem perder tempo porque sabia que seu irmão estava longe de fazer uma. Orientação familiar não tiveram; a quem deveriam procurar? Médico não é bom para isso… “Quer saber? Vamos dar tempo ao tempo, quem sabe algo se esclarece!?”

continua…

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