O ACORRENTADO – Parte I
– Eles, a família
O dia mal começara e ele já estava a postos. Viera caminhando, como sempre o fazia e, ao atravessar os portões do cemitério, sentia uma paz familiar, como se visitasse um parente antigo, muito querido. Podia parecer estranho, ele não compreendia, mas o cemitério o acalmava e lhe proporcionava uma alegria jovial; justamente ali, entre as árvores retorcidas e antigas, diante de um Anjo ou Santo, Seu Apolinário relaxava e até refletia, construindo explicações.
Há trinta e cinco anos, repetia essa rotina de trabalho entre os mortos e aprendera a construir, nesse ambiente, raros momentos de felicidade tranqüila, sem incômodos externos. Cercado por muros brancos e altos, o homem magro e de pele queimada-de-trabalhar-no-sol podia não falar, executar tarefas, cuidar das coisas, remexer a terra e esperar, com resignada sabedoria, que uma importante parcela do mundo viesse visitá-lo. A visitação tão singular e inevitável daqueles que se despedem dos que amam era, talvez, o único momento em que comungava, com o resto do mundo, a mesma percepção, e sentia que concordava, então, com o que faziam.
No entanto, existia também em seus afazeres uma condição-evento de satisfação explosiva, de participação auto-consentida, de pura revelação: era quando acontecia a exumação de um corpo. Seu Apolinário, de auxiliar eficiente e parte quase-invisível de um ritual revestido de tristeza e de dor, transformava-se no mensageiro de boas novas executando, com destreza, todos os procedimentos necessários. O coveiro concentrava-se tanto e de tal forma que chegava a salivar de contentamento quando seus olhos castanho-escuros acompanhavam os detalhes do perito que mexia nos pedaços de corpos em decomposição.
E Seu Apolinário reconhecia que quanto mais apodrecido e mal cheiroso era o pedaço de carne à vista, maior prazer e mais vontade de vibrar sentia e, então, automaticamente, mais força era produzida em sua alma cansada. Ele jamais havia falado disso com alguém, sequer se detinha em pensamentos sobre o estranho deleite diante da deliciosa imagem de uma carne escura e desfiada da mão humana, por exemplo. E guardava para si essas idéias esquisitas, até porque não saberia como delas falar, que palavras evocaria para mostrá-las?
E foi no cemitério-de-sua-tranqüilidade que Seu Apolinário, um dia, refletindo, depois da presença dela, falou para si mesmo, em voz alta, que de esquisitice não compreendia, mas de esquisitice vivia, há muito, desde que seu filho mais novo nascera. E quando pensava nele, no menino sem amigos e retraído que um dia começara a falar palavras incompreensíveis, sentia-se necessariamente culpado, sentia-se visceralmente atingido, sentia-se pai do-que-não-se-explica.
O coveiro, a vida inteira, defendeu, com veemência, que seu filho não era louco. “Como pode ser louco, se não coloca o dedo na tomada?” “Como pode ser louco, se lembra de fatos que realmente aconteceram?” E, repetia, incansavelmente, entre uma sepultura e outra, as mesmas considerações: ele não sabia explicar as atitudes do filho assim como não podia explicar sua paixão por carne humana apodrecida; é claro que, bem no fundo, sentia que se tratava da mesma coisa: fazia parte da vida, não prejudicava ninguém, era assim.
Em relação aos médicos, o homem de pele queimada-de-trabalhar-no-sol nunca entendera bem o que diziam. A explicação oferecida não esclarecia, não convencia, não identificava; nem a orientação de como proceder com os remédios era assimilada e executada. O pai do-que-não-se-explica ouvia as palavras difíceis dos doutores de branco e nada poderia ser mais distante, nada poderia ser tão inútil porque seu amado filho continuava do mesmo jeito, apesar daquele palavrório complicado e vazio.
“Dessa vez, no entanto, era diferente”, pensou, enquanto contemplava uma beirada de sepultura. Ela falava e as palavras ganhavam vida, ficando iluminadas, indicando algo que depois, toda sua família nomeou de esperança. A moça tinha olhos azuis de tonalidade escura e uma paciência que Seu Apolinário admirava; de todos os que resolveram ajudar, essa psicóloga era a mais jeitosa, simpática mesmo, e estava conseguindo que ele, inclusive, pensasse em coisas nunca pensadas até então.
– Os intrusos
A última visitação-sem-aviso que receberam fora da Pastoral da Saúde, e acontecia sempre: um grupo de pessoas resolvia que deveria averiguar as condições de tratamento do seu filho, para no final, declarar que precisavam buscar “orientação adequada”. E Seu Apolinário, dessa vez, desatou a rir: riu, riu, riu. As devotas de Santa Rita se entreolharam, onde estaria a graça? Aquelas caras piedosas entendiam pouco de ser pai do-que-não-se-explica, ele pensava enquanto ria, ria, ria, então, as senhoras ganharam ares sérios e foram se aproximando umas das outras, cautelosamente. Estavam no ponto de iniciar um Pai Nosso, quando Marieta, delicadamente, ofereceu-lhes café. As devotas, aturdidas, resolveram aceitar e acompanharam a dona da casa até a cozinha; o coveiro continuava rindo: “orientação adequada”, “orientação adequada”, “orientação adequada”…
Marieta encarregou-se de finalizar a visita, despedindo-se das senhoras, quinze minutos depois, reafirmando que iriam sim procurar o Serviço que haviam indicado. Seu Apolinário não ria mais, estava imóvel, agachado num canto do quarto escuro. Ele não sabia por que ainda deixavam essas pessoas entrarem, por que deixavam que falassem, por que faziam o que sugeriam. Por quê? Não bastava o filho daquele jeito? Não bastavam as internações? Não bastava a dor pelo-que-não-se-explica?
Talvez fosse por instinto que não rompiam de vez com a visitação externa, talvez considerassem perigoso demais viver sem dar satisfação aos vizinhos, às pessoas da Igreja, aos olhares curiosos e quase sempre levianos dos desconhecidos. E curioso, fora justamente a última visitação que fez com que conhecessem a moça que agora os ajudava de verdade. Esta sim resolvera estar com eles sem grandes ensinamentos, sem muito palavrório, vendo de perto e com tempo, o que acontecia naquela casa e em suas vidas.
– O irmão
Ele estava consertando o freio da moto em frente ao bar quando seu pai, com aquele jeito lento e cadenciado, sentou-se numa cadeira e disse que tinham falado com uma psicóloga que queria conhecer o caçula. Igor tirou os óculos de lentes grossas e os limpou, depois olhou a rua sem movimento, então falou: “o que o senhor achou dela?” “Gostei, é a primeira vez que gosto realmente dessa gente”. “O que ela tem de diferente, pai?” “Eu não sei, filho; confio nela, apenas”. Igor, desde cedo, aprendera a acreditar nas percepções de Seu Apolinário e sentiu que a moça-diferente, talvez pudesse esclarecer sobre o estado de seu irmão.
Ele, apesar de sofrer com a situação, queria saber do que se tratava. Igor queria um motivo, uma razão, um sentido. É que deveria haver um sentido, como não? Tudo deve ter um sentido nessa vida; as coisas têm explicação, causas, um começo. E se algo foi feito, não poderia ser desfeito? Que tipo de coisa não se desfaz? O rapaz de 26 anos, segurança, dono de uma moto e irmão mais velho de Arthur, também vivia imerso na esquisitice, mas aspirava algum tipo de clareza, de certeza, de consolo. Em suas intermináveis noites em que chorava silenciosamente até adormecer de exaustão, definia a vida de sua família como “viver com o que não tem consolo”.
A primeira vez em que aconteceu fora tão impressionante que sabia que nada do que pudesse viver atingiria tanto sua alma, suas crenças, sua alegria. Arthur completara vinte anos, e vinha se comportando de forma um tanto diferente: estava agitado, assustava-se com facilidade e fazia umas caretas sincronizadas que mais pareciam um tique nervoso. Seu Apolinário e D. Marieta ficaram preocupados; o menino-retraído sempre se comportara de um jeito pouco comum, mas daquela vez havia um excesso, uma tensão cumulativa, silêncios hostis; estavam de sobreaviso, portanto.
Igor não foi trabalhar naquele dia exatamente para vigiar o irmão, e os dois estavam atendendo as pessoas no bar quando Arthur soltou um grito que mais parecia um urro de animal. Os clientes saíram às pressas enquanto o moço começava a quebrar tudo: Arthur jogou cadeiras e mesas em diversas direções e, pegando um caco de vidro, passou-o em seu braço, gargalhando, quando viu o sangue escorrer; depois lambuzou a mão no sangue, passando-a no cabelo e arrancou a camisa, rasgando-a de cima abaixo. Igor, até esse instante, não esboçara qualquer reação, ficando estático, boquiaberto, tremendo.
Ele reagiu somente quando seu irmão se abaixou, pegou um prego, o engoliu e, em seguida, olhou para o molho de chaves em cima do balcão; o motoqueiro pressentiu que as chaves teriam o mesmo fim e, num segundo, se atirou sobre Arthur conseguindo impedir que as alcançassem. Depois lutaram, levou socos e pontapés, tentava imobilizar o Furioso, pedindo ajuda para o aglomerado de gente que se formara em frente ao bar. Os urros de Arthur não cessaram e, cada vez que uma pessoa tentava se aproximar, ele urrava com gosto e o “destemido” afastava-se, apavorado. Igor, no começo, sentiu pena do irmão e seus socos eram mais para defender-se do que para atingi-lo; com isso apanhou muito, começou a sangrar e temeu que Arthur pudesse derrubá-lo e ganhar a rua, quando o pior aconteceria.
Então resolveu que não havia saída: tinha que bater, tinha que machucar, tinha que derrubar: e a luta foi feroz, horrível mesmo de se ver, imaginava, porque tornou-se de vida ou morte. O bar veio abaixo, o aglomerado avolumou-se e o sangue, misturado com os urros, denunciava o extremo de algo ruim, sem o menor controle. O irmão mais velho, de um salto, acertou, com um pedaço de uma madeira grossa, uma cacetada bem na testa de Arthur, que cambaleou e caiu, permanecendo inerte por alguns segundos. Foi o tempo que Igor precisou para imobilizá-lo com uma corda; e nesse exato instante, Seu Apolinário chegou.
O velho olhou para o bar, olhou para os filhos no chão, e voltando-se para o aglomerado disse: “alguém chame uma ambulância e alguém venha ajudar aqui”. As pessoas mexeram-se, as palavras do pai de Arthur devolveram-lhes o senso prático. Dois vizinhos, imediatamente, prontificaram-se a auxiliar Igor na tentativa de imobilizar o irmão, que gemia ensangüentado no chão. Conseguiram mais cordas e ataram os pés e as mãos do Furioso, depois ataram os braços no corpo e viram, enfim, que se acalmava ficando inerte numa única posição.
Igor estava abraçado ao irmão, pois, queria amortecer qualquer tentativa dele de bater a cabeça no chão. Os dois permaneceram algum tempo daquele jeito e ninguém no bar ou fora dele falou o que quer que fosse. O medo, junto ao cheiro de sangue e suor, somado à perplexidade coletiva, produziu um silêncio que o dono da moto jamais esqueceu. Depois, um som de sirene foi se intensificando até que homens de branco entraram no bar e conduziram a situação daí por diante.
continua…