Martim – Análise

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A DESUMANIDADE

NESTE CONTO, estamos diante do desconcertante e complexo tema da
psicopatia. São poucas as condutas humanas que apresentam a capacidade
de provocar tamanha indignação, perplexidade e revolta. E a primeira reação-explicativa é denominar de não-humano o protagonista,
é concebê-lo como uma criatura moralmente deformada, configurando
um exemplar monstruoso que será afastado do convívio
social.

E assim deve ser: o psicopata é um risco para os demais. E não há
tratamento ou solução para casos assim; o único procedimento é
impedi-lo de agir, restringindo sua liberdade. E mantê-lo aprisionado,
para sempre, se possível.

E do ponto de vista teórico-clínico o que dizer sobre ele?
A dificuldade persiste. É extremamente difícil a tarefa de explicar
porque alguém mata um semelhante e continua a fazê-lo sem culpa e
arrependimento. Os especialistas até discorrem sobre aspectos diversos
que identificam a psicopatia, no entanto, construir uma teorização
coerente (e convincente) é um desafio e tanto.

Eu, nesta análise, seguirei as pistas que o Conto fornece; penso
que desta forma seja mais simples. E se, ao final do percurso, conseguir
juntar características, identificar um funcionamento e apresentar
uma hipótese, me darei por (extremamente) satisfeito.
Em primeiro lugar, para Martim, matar Gabriel é positivo. E assim
acontece porque o coloca mais perto do que realmente é, fortale endo o si-mesmo.

Este é o ganho que o ex-jornalista obtém com o
primeiro assassinato (e com o ato de matar): o poder sobre a existência
de outrem potencializa o alcance da sua força de vida ampliando
os seus limites.

Para matar, Martim precisou tornar-se mais forte, mais ágil, mais
bonito, mais magro, mais determinado, mais concentrado, mais e
mais e mais. E ao executar o primeiro assassinato, prudentemente,
esperou-observando para identificar as reações e verificar se confirmava
o que pressentia.

Tal atitude nos autoriza a supor que ele confirma, ao longo da
vida, o que trazia consigo em formato de possibilidade. E faz isso
pacientemente, conscientemente, teimosamente. O que deixa a impressão
de que, em certo sentido, pôde escolher. E que jamais alterou
a direção de sua escolha.

E aqui já nos lançamos na desafiadora aventura de hipotetizar.
Será que a psicopatia pode ser compreendida desse modo? E se
puder, a nossa hipótese teria este início: existe no indivíduo uma
possibilidade-inscrita que, ao longo da vida, será confirmada (ou
não).

A possibilidade-inscrita corresponde a um funcionamento singular
que reivindica a confirmação e aqueles indivíduos que a apresentam,
no decorrer dos anos, poderão viabilizar o gesto-psicopata.
Então, se assim for, existe uma categoria de pessoas que traz um tipo
de funcionamento mental que as habilita ao ato destrutivo.

O que também significa que as pessoas dessa categoria podem
exercer a psicopatia de duas formas: em potência ou ato. Martim permanece
diversos anos na potência, enamorado da perspectiva de concretizar
o que vez ou outra vislumbrava. E, por fim, o professor de
inglês atravessa o portal definitivo.

Em termos de funcionamento, o indivíduo, na potência ou no ato,
estabelece as mesmas relações com o mundo: ele irá manipular, usar e
destruir as pessoas para afirmar o si-mesmo. O que difere é o grau de
uso e de destruição. A subcategoria psicopatia-em-potência viabiliza
o uso e a destruição, porém, o gesto correspondente não resulta em
um efeito definitivo permitindo que a vítima se “recupere”. E o psicopata
pode até passar despercebido pela vida afora, não comprometendo
sua existência (nem a dos demais).

O que significa dizer que, em termos de dinâmica psíquica, algum
fator o impediu de levar às vias de fato o seu propósito, sua
vocação. É razoável pensar desse modo e pensar ainda que exista um
número expressivo de pessoas nessa parcela da categoria.

E se assim for, também é possível pensar em prevenção e correção,
na infância e na adolescência, evidentemente. O que indica que
o ato tem um poder incomensurável (porque definitivo) na
psicopatia: reforça a tendência do si-mesmo estabelecendo compensações
e promovendo a consolidação de uma identidade.

Em termos de dinâmica psíquica, as poucas chances de reverter a
psicopatia ficariam, com o ato-destrutivo, definitivamente desprovidas
de força de influência. E penso que a não-reversibilidade advém
da fragilidade dos fatores que poderiam alterar a tendência
estabelecida: não se trata de um conjunto de significados capazes de
imprimir outro direcionamento, trata-se tão somente de mecanismos/
recursos isolados, destituídos de energia e contendo significados
parciais, incapazes de sustentar outro direcionamento.

O caráter definitivo da psicopatia, portanto, do ponto de vista
psíquico, estaria localizado na homogeneidade de significados e na
predominância de um tipo: aquele que exclui a capacidade do protagonista
de sentir culpa ou arrependimento.
O psicopata-em-ato se caracteriza, então, por apresentar a configuração
mental que operacionaliza a destruição das pessoas, não se arrepende
disso e é incapaz de alterar esse comportamento. É no que Martim
se transformou depois de matar Gabriel. Quais seriam, portanto, as
características de um psicopata?

No caso do nosso protagonista, ele menciona uma divisão radical
entre o si-mesmo e o outro. Um distanciamento significativo,
que apresenta divisórias bem demarcadas e que o autoriza a existir
reagindo de forma a desconsiderar a opinião alheia. O que significa
que as relações que mantém com as outras pessoas não é suficiente
para produzir o impedimento da destruição, ou seja, o si-mesmo não
é afetado pelo outro.

Eu penso que esta é a característica central da psicopatia. O simesmo
é investido de um quantum de energia que impede a inscrição
do outro Nele-mesmo. É o que os especialistas denominam de
Narcisismo e que, a meu ver, resulta da tensão entre o si-mesmo e o
outro, em determinada fase da vida em que o psiquismo está iniciando
sua construção.

E que a noção de Outro surge associada às sensações desagradáveis
decorrentes dos (próprios) impulsos não satisfeitos ou de impulsos
hostis, existentes na condição humana. O psicopata seria então,
em última instância, uma pessoa que não suporta a existência de
necessidades e reage a elas atacando. O que significa que não suporta
a autonomia da existência: que alterna sensações agradáveis com sensações
desagradáveis e que se constrói na movimentação.

E ao avançar em seu processo de consolidação do si-mesmo, o
psicopata atribui – definitivamente – ao Outro seu descontentamento
porque é a parcela do mundo não-sujeita a suas intenções (e controle).
Ele não foi capaz de suprir o seu descontentamento através de compensações
nem de simplesmente suportá-lo. Na verdade, ao atacar, “acredita”
que compensa as sensações desagradáveis manifestando a hostilidade
e provocando a destruição. Assim, produz a ilusão-crença de que
a vida está sob seu poder, que pode alterá-la (ainda que às avessas).
O psicopata seria, então, um equivocado que faz da destruição a
resposta à autonomia da vida.

Isso explicaria o poder altamente destrutivo dessa categoria de
pessoas, mas não explica a ausência do arrependimento. Penso que a
ausência viria do Narcisismo extremado, em que o si-mesmo é investido
de energia até auto-isolar-se. As camadas de energia conduziriam
a uma espécie de cristalização em que a indiferença pelo outro
seria a conseqüência natural.

A questão da ausência do arrependimento, na psicopatia, portanto,
está relacionada ao investimento de energia, em que a quantidade
excessiva produz uma cristalização que resulta na indiferença em relação
à existência dos outros. E a instalação da indiferença elimina a
capacidade de controlar o comportamento através da concepção de
certo/errado.

A indiferença, alojada no psiquismo humano, faz com que este
indivíduo saiba o que é certo ou errado, mas que não aja de acordo com
isso. A culpa e o arrependimento inexistem para ele, ou seja, o simesmo
protegido pelo Narcisismo não reconhece essas realidades
afetivas1. E de forma irreversível, definitiva.

O que é curioso é que eles, representantes da indiferençaintersubjetiva
são capazes de amar e receber amor (pelo menos em
certo grau). Veja no Conto, Martim foi. E existe uma controvérsia
em relação a esse ponto: os psicopatas são capazes de amar? Eu sou
daqueles que defendem que sim, em certo grau, como já disse. E pelo
seguinte: a condição humana se constrói na multiplicidade de significados,
portanto, paralelo à indiferença-intersubjetiva existirão significados
que reivindicam a presença do Outro de forma não-indiferente.
Principalmente, no que diz respeito à básica necessidade humana
de sentir-se amado. É por isso que não podemos considerar o
psicopata não-humano, ele se constitui numa variante humana, aquela
que é portadora do grau máximo da indiferença-intersubjetiva,
porém, não se livra da necessidade de sentir-se amado. Um belo exemplo
dessa situação, aparentemente contraditória, é a relação do Dr.

1. Em relação ao desenvolvimento de sua personalidade, é possível considerar que os conflitos inerentes à condição humana serão vivenciados de modo singular: não atravessarão a barreira do Narcisismo mantendo – praticamente – todos os afetos neutralizados. Inclusive o ódio. Não é o ódio que o move, é a reação-afirmativa de que a destruição compõe o seu ser. Ou seja, ele é o agente do sofrimento e da destruição – eiso seu lugar no mundo.

Lecter com Clarice Starling: ele(2) a trata como sua garota e poupa sua
vida num ir e vir enamorado, que chega a ser comovente.
É que a personalidade3, como já disse, manifesta-se na
multiplicidade de significados e a versatilidade é uma característica
do si-mesmo. Isso resulta, por exemplo, num psicopata que ama, mas
que não se vê impedido de matar pessoas: e convenhamos, uma coisa
não tem relação com a outra. Parece que tem, mas não tem. Sentir
amor por alguém corresponde a uma Necessidade e manter-se indiferente
a outros corresponde a uma Dificuldade com a aceitação das
sensações desagradáveis da existência. O que uma coisa tem a ver
com a outra?

As duas situações partem de necessidades/condições/reações
diferenciadas e se estruturam no psiquismo em regiões distintas: a
energia psíquica flui em todas as regiões e as integra sendo que o
formato de uma região influencia a outra, por isso, a noção de grau é
apropriada: ama-se em certo grau, o grau que a indiferença intersubjetiva
permite. O que também explica a variedade de psicopatas:
há aqueles que amam menos e aqueles que amam mais, isso
dependerá do grau de rigidez da indiferença-intersubjetiva.

É isso.

2. O Dr. Lecter se constitui. a meu ver, no psicopata por excelência: ele é inteligentíssimo, culto, intuitivo, prático, assertivo e letal. A sua perspectiva de abordagem dos significados  atribuídos à condição humana e o seu modo de interação com o mundo indicam uma inserção que sofre pouca oscilação provocada pelo vaivém dos afetos: o que lhe confere uma assertividade precisa, inequívoca, assombrosa: o canibal não duvida, não teme, não recua, não se arrepende.
3. Neste sentido, o Dr. Lecter apresenta uma homogeneidade rara em termos de configuração psíquica: a) um direcionamento, estratégia de economia e investimento da energia sem gastos desnecessários, b) o estado de repouso e de atividade como estados – similares – na utilização da energia psíquica, c) a utilização do ato-em-si como legitimação do si-mesmo.
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