Helenas – Parte II

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– A alma espelhada

Mariana, tarde da noite, ainda se sentia sob o forte impacto do encontro com Helena. O namorado ligou e quis vê-la, ouviu um não e, para compensar, uma promessa foi feita: na semana seguinte, mais assim para o final, ele poderia vir e instalar-se em seu apartamento. “O único homem que me interessa no momento é meu supervisor, preciso conversar, preciso compreender certas coisas, preciso perguntar e refletir, refletir, refletir…”

Se teve uma coisa que Helena não permitiu a Mariana foi a reflexão, e a vocalista ainda se sentia estranhamente privada dessa capacidade ali – silenciosamente deitada em sua cama – horas depois de ter deixado a Clínica. Ela não sabia explicar, mas era como se houvesse uma condição para acompanhar aquela moça: a instalação de um estado virgem de apreensão e comunicação da alma, em que as explorações caberiam apenas à paciente. “Será que estou ficando louca?” Balbuciou enquanto levou a mão à pinta, em cima dos lábios; em seguida, lembrou-se da louca-Helena carregando aquele asfixiante cheiro de doença-de-morte confirmado pela ineficácia de atitudes ocas. Sentiu novamente, o calafrio.

Mariana tentava esquecer e, no entanto, sentia-se engolfada; nem por alguns minutos conseguia se livrar da presença das Helenas e resolveu denominá-las de personagens-personalidade, já que precisava expor o que acontecera e sabia que deveria tomar cuidado com as palavras para não… para não… A plantonista percebeu que as palavras não serviam como referência para o atendimento da mulher de Daniel e deveria encontrar outro modo, outro jeito, outro…

O despertador tocou e a moça, de sobressalto, tentava deixar para trás o dia-de-ontem; ela conseguira enfim, cochilar nos intervalos… conseguira, pelo menos… Mariana levantou-se, tomou um banho demorado, deixando a cabeça debaixo da água quente, fazendo muita espuma, como criança; no entanto, sua alma ainda não conseguia relaxar porque precisava refletir, refletir, refletir…

Então, saiu apressada e só pensava em contar para o supervisor, sabia que dependeria dele o sucesso do seu reencontro com a esposa de Daniel.

 

–         A conversa

“Eu vou contar o que aconteceu, mas eu perdi a agilidade com as palavras, pelo menos no que considero essencial; eu perdi, professor, nesse caso, as referências e preciso saber como proceder”. Ele balançou a cabeça com tranqüilidade: “fale” e todos os olhares voltaram-se para a angustiada aprendiz.

Mariana suspirou e começou o relato: falou pausadamente, depois falou com objetividade, num ritmo acelerado; depois emudeceu; depois falou de si, do que sentia, dos sustos que teve de enfrentar, das surpresas diante de cada aparição de Helena; mais à frente falou de suas tentativas infundadas de reflexão e continuou falando, eternamente.

Falou por aproximadamente quarenta minutos, sem qualquer interrupção e, na medida em que avançava na exposição dos acontecimentos, percebia a estupefação no rosto de cada colega. O burburinho sobre aquele atendimento já correra mundo pela Clínica afora, mas os detalhes, as aparições, suas características, isso era novidade-surpreendente, muito. E o bom é que ninguém quis perguntar, queriam ouvir, queriam que falasse, queriam a continuidade, queriam a compreensão.

Mariana chegou ao final do relato um tanto aliviada, sentia que conseguira cumprir a primeira parte de sua empreitada. O supervisor acompanhou atentamente sua exposição e depois de algum silêncio, disse: “o que é mais difícil para você em relação ao atendimento da Helena?” A aprendiz respondeu: “o que ela me pede, não sei se consigo.” “E qual é o pedido?” “Que eu me empreste a ela para que possa, através de mim, ser tudo o que necessita”. “É isso mesmo, você captou bem a essência da coisa; e qual a dificuldade?”

A aprendiz estacou, sabia e não sabia. “Ela exige demais de mim: várias versões, emoções intensas, espera conformada, essências tão distintas de mulher que sinto receio de não corresponder.” “Mas houve correspondência, e o que eu considero importante saber é se você pretende continuar.” Mariana desejava ardentemente continuar, assim como desejava perder-se-corajosamente na ineficácia terapêutica, desistindo. E foi isso que pensou e foi exatamente isso que o supervisor disse sobre seus desejos.

“Atender Helena é poder instrumentalizar a condição feminina para fins terapêuticos, ou seja, você precisará emprestar-se para que ela possa vivenciar-se dividida em seis mulheres. O que teme na condição feminina?” Ele perguntou enquanto a observava atentamente; “a oscilação”, ela respondeu. O silêncio veio, o supervisor permaneceu calado. “Cada Helena tem uma essência, elas me cansam, mas não me assustam; o que receio é o deslumbramento de cada versão, elas reivindicam primazia e são tão atraentes…” O silêncio continuava.

Ninguém ousou fazer qualquer comentário, esperavam. “Continue”, ele estimulou; “as essências são verdadeiras em cada versão”, ela completou; “as essências são verdadeiras em cada modo de ser mulher”, ele arrematou; “sim”, ela concluiu. “E você não tem problema com isso, pelo que percebi no seu relato; se tivesse, não teria acompanhado as Helenas”. “O meu receio é o risco de toda mulher: é dimensionar uma versão e reivindicar a primazia de uma única essência”. Os olhos do supervisor brilharam, ela chegara ao ponto crucial de sua situação. “Você vê alguma solução possível?” Ele quis saber. Mariana olhou fixamente em seus olhos e disse: “não, nenhuma”. O supervisor olhou em volta: “alguém vê?” Ninguém respondeu.

         – O masculino

“Use o masculino que existe em você”, ele sugeriu depois de algum tempo. Mariana não compreendeu de imediato: “como?” O professor continuou, “existem muitas atitudes motivadas pelo elemento masculino, vamos dizer assim, no seu encontro com Helena: vocês duas, no chão, uma querendo explodir e a outra no movimento-de-contenção, isso se parece com o quê?” A aluna riu e foi a primeira vez que conseguiu achar graça de alguma coisa que acontecera entre elas; “foi uma luta, professor, uma queria vencer a outra, havia uma força descomunal entre nós…” “Isso é próprio do masculino, você não acha?”

“Ainda não entendi aonde quer chegar…” “A sua maturidade no trato com o feminino é a chave para estar com as Helenas e o bom uso de sua parte masculina pode ser a chave para a eficácia terapêutica”. Mariana, ao ouvir essas palavras, sentia que algo – à revelia – tomava forma em sua alma: era um componente-fluido-e-sólido que escorria, que poderia tornar-se aço, que poderia amolecer novamente, que ocupava os espaços.

“Mantenha-se fiel ao feminino em pauta quando estiver alojada em cada essência feminina, e faça o contraponto com o modo masculino, quando julgar necessário. Não haverá contradição, somente oposição-ou-complementaridade, o que é natural na constituição do gesto humano, sempre mesclado dos dois elementos. É o que deve fazer para ajudar Helena a reverter seu processo de enlouquecimento. Acredito que ainda seja possível”.

A resposta para o seu enigma estava ali, havia sido dada, Mariana a encontrara. O que não tinha certeza era de que conseguiria e de que Helena também conseguiria. “Sem garantias, meus alunos, não temos essas garantias; o que podemos é descobrir a melhor maneira de interagir e nos esforçarmos para conseguir, só isso.” A vocalista viu um abismo abrir-se diante de seus pés, como é que alguém se aventurava daquela forma? Como é que alguém se metia com aquilo?

E, pela primeira vez, viu seu envolvimento com a psicologia como algo estrutural, decisivo, feito de essências de almas que ela conseguia orquestrar numa única variante. “Eu quero tentar, professor.” “Tem certeza disso, Mariana?” Ela fez que sim com a cabeça, “você pode desistir agora, nesse exato instante, sem o menor constrangimento”. A moça-que-canta pensou em Helena, no seu desamparo, em todo aquele desespero e sentiu que deveria estar ao seu lado, mesmo sem garantias.

“Eu quero”; “está bem, então seguimos adiante”.

 

–         Os enigmas

“Há tanto enigma nesse atendimento, que o melhor é não se deter tempo demasiado em nenhum deles; não os leve tão a sério, concentre-se no que precisa desenvolver, aprimore seus recursos e reavalie a situação a cada atendimento. Me ligue para contar como foi a sessão no mesmo dia em que ela acontecer, e fale tudo, mesmo o que considerar bobo ou absurdo; tudo mesmo, compreendeu?

As sessões deverão ser parecidas com a primeira, terão o mesmo padrão; todas as Helenas virão, elas precisam existir através de você e com-você. Helena a transformará nela mesma e deve deixar, Helena precisará que não-seja-ela-mesma e deve não-ser, é assim. Não faça mais nada no dia em que atendê-la, tenha amigos por perto e se possível peça que fiquem com você; cuide-se.

Em relação à Helena-amalucada, tome cuidado para que não se machuque gravemente ao debater-se; segure-a, proteja-a, não vacile, aja. No próximo encontro, converse com o marido e certifique-se de que saberá como proceder diante da possibilidade disso acontecer em casa, tranqüilize-o dizendo exatamente o que fazer. Também, interrogue sobre as crianças, elas não podem ficar à mercê das oscilações da mãe, resolva com Daniel a melhor maneira de preservá-las.

Há ainda outro aspecto importante: preste atenção na medicação prescrita, entre em contato com o psiquiatra que a atendeu e converse com ele, discuta o prognóstico. Nas sessões, verifique se Helena toma os remédios, se os considera necessários; e não se esqueça de investigar com Daniel se a paciente – de fato – segue a prescrição médica. E, finalmente, marque uma consulta com o nosso psiquiatra e leve Helena até ele, vamos conhecer sua opinião sobre o caso”.

 

–         A reflexão

“Como é que eu vou aprimorar o masculino em mim?” Mariana pensava enquanto comia um delicioso pão de queijo. Apesar de considerar “verdadeiras” muitas das teorizações da psicologia, nunca deixara de avaliá-las de outras posições, de perspectivas diversas. Em outros tempos, se ouvisse a proposta do supervisor, a rebateria com unhas e argumentos, com graça e perfume, a ferro e sangue.

Esse posicionamento dava-lhe uma autonomia descrente porque bastava pender para o lado oposto de qualquer apresentação-argumentativa que a crítica se instalava causando um distanciamento agudo, pouco condescendente. Mariana, porque concebida nas águas claras da diversidade, não era mulher para ser convencida, era mulher para ser convidada, naturalmente auto-concebida na igualdade de condições. A plantonista decidiu então que, por Helena, “obedeceria” o supervisor, mesmo que a dúvida atravessasse sua alma e o desconhecido exigisse submissão, completa.

 

–         A reflexão do supervisor

Enquanto apreciava seu café, o supervisor avaliava a situação: era um caso fora do comum aquele e isso vinha se tornando uma constante no atendimento de Plantão. A cada ano, a complexidade dos casos aumenta, por que será? Em termos de transmissão de conhecimento era importante considerar essa questão porque casos com cota extra de dificuldade requisitavam alunos excepcionalmente talentosos, treinados e com estrutura emocional bem constituída.

Ao pensar em Mariana, sabia que a moça-que-canta possuía dois desses requisitos, mas em termos de treinamento, estava no início e isso o preocupava. Outro fato curioso é que Helena conseguiu ser atendida justo por ela. Como se explica? As duas são mulheres, mulatas, com idade próxima, e têm uma pinta no lábio – do mesmo lado. Além disso, Mariana “foi feita” para atender Helena em decorrência da configuração de sua personalidade, por causa de sua rara capacidade de resolver-descomplicando as questões próprias da condição feminina.

A Helena-composta-de-seis encontrou pela frente, a única estagiária capaz de atendê-la e – de fato – ajudá-la; era sua única chance. Esse “casamento” perfeito em termos de necessidade mais auxílio específico é comum nos estágios em Clínica e os alunos até fazem graça dizendo que “cada terapeuta tem o paciente que merece”. “É isso mesmo, e por que será?” Ele repetia mentalmente, enquanto levava a xícara à boca.

E outra questão intrigante é o fato deles optarem pela continuidade, o que os move? O supervisor sempre se surpreendia com a decisão dos seus alunos. “O que move essa bela-cantora, por exemplo? Ela não tem garantia alguma, reconhece a complexidade da situação e mantém-se firme, disposta a sacrifícios. E o que faz com que eu deixe que ela se arrisque a tanto? Em que baseio minha confiança? É claro que a moça continua porque assimila o formato que lhe apresento, caso contrário, desistiria. E por que sempre apresento o formato?” O supervisor olhou pela janela e sentiu orgulho de si mesmo e do que podiam realizar diante de situações tão complexas e dolorosas.

“Aquilo de enfrentar-respeitando era sem dúvida uma postura diante da existência”, pensou, “encarnava uma atitude afirmativa; constituía-se numa forma de sabedoria colocada a serviço de um direcionamento vivo, construtivo. E somente a paixão pela psicologia era capaz de possibilitar esse tipo de postura-atitude. Na verdade, era mais que paixão aquilo, era um amor-paixão-crença; algo forte, determinante, invisivelmente-concreto”.

Eles voltaram para a supervisão e, ao olhar para Mariana, o supervisor percebeu que a moça encontrara o caminho e estava em marcha; ela agora, dispunha de material-para-reflexão, o que possibilitaria a distração necessária em casos tão complexos. Naquela distração, seria ela mesma, desconectada de Helena; seria apenas uma mulher disposta à vivência plena de sua condição: o feminino humano.

Falaram de outros casos.

 

–         Os efeitos

Ela chegou em casa e ligou para os amigos-componentes-da-banda, contou por alto o que se passara e desmarcou os compromissos para as próximas quatro semanas; não havia nada de tão urgente assim, e os rapazes não fizeram perguntas desnecessárias, já a conheciam o suficiente para identificar o sinal vermelho.

Mariana repassou a supervisão, frase por frase, gesto por gesto, sentimento por sentimento; depois, fez o jantar, tomou várias doses de pisco chileno e permaneceu refletindo. O reencontro com a mulher-desdobrada-em-seis seria no dia seguinte, logo cedo, e constatava, feliz, que havia conseguido sair do turbilhão em que fora lançada com o enigmático encontro. Agora, existia uma tranqüilidade de alma que a embalava: completamente voltada para a condição de Helena e disposta a compor uma unidade, a vocalista nada temia, nada reivindicava, de nada necessitava. Dormiu profundamente.

 

–         O retorno

Eles chegaram dez minutos antes do horário combinado e o que se viu foi uma repetição da cena do Plantão: Helena “pendurada” no marido, que a conduzia com altivez e cuidado. Mariana pediu que se dirigissem à sala de atendimento e foi na frente. Seguiram-na, a mesma posição dois-em-um dentro da sala. Daniel fez um pequeno relato de como as coisas estavam em casa, esclareceu que não sentira alteração no estado da mulher e seu objetivo foi acalmar as crianças. A estagiária o tranqüilizou dizendo que conversariam no final daquela sessão, em seguida, pediu que ele as deixasse sozinhas.

Assim que a porta se fechou, Helena ergueu a cabeça e perguntou: “o que você acha dele?” E soltou o lenço, caminhando pela sala, era a ninfomaníaca em ação. Mariana agora, pela voz, sabia qual delas estava em cena, poderia permanecer de olhos fechados que as identificaria. Rapidamente se ajustou à devoradora de homens e respondeu: “maternal, viril, reprodutor; muito certinho, na maioria das vezes. Sem dúvida, um bom marido”.

A resposta pegou a paciente um tanto desprevenida; a mulata, perplexa, deixou o lenço cair, parou de falar, sentou-se diante da aluna e disse: “essa frase é minha, eu a teria dito exatamente assim, com conhecimento de causa, com o mesmo tom de desprezo e conformismo”. Mariana permaneceu em silêncio e olhando-a com ternura e naturalidade, depois perguntou: “e o que faz quando precisa de mais?” “Faço ele fazer toda hora, extraio toda sua força; quero aquele pinto fazendo parte de mim, transformo Daniel em pinto, em caralho, em cacete, em porra”.

A ninfomaníaca olhou pela janela, “e lembro do que já fiz, antes de conhecê-lo, e ressuscito todos eles, e aparecem outros, os desconhecidos-atuais; e me vingo dele com o meu passado, e com os novatos, e quero violência e imagino violência, e bato e arranco partes do rosto dele com pequenos e finos estiletes, e depois cravo minhas unhas em rostos-caralho e rio, numa movimentação eterna, incansável, permanente”.

A aprendiz continuou olhando para a paciente com naturalidade, a mulher de Daniel, agora, respirava com dificuldade trincando os dentes. O silêncio esticou-se, então, de repente, aconteceu uma coisa muito estranha: a plantonista “viu” a Helena-ninfomaníaca, depois “viu” o marido-objeto-alvo-de-seus-ataques, depois “viu” Helena, depois o marido-objeto, depois permaneceu no intervalo da “relação” dos dois. Ela estava entre, lá e cá, integrada na totalidade reconhecendo as particularidades.

E, surpresa, falou: “eu imagino que seja impossível não se assustar com a intensidade da agressividade que você dirige a ele”. Helena voltou-se para a estagiária, parecia incrédula, parecia ofendida, “o que quer dizer?” “Me refiro ao choque entre o Amor e a Destruição”.

Nesse instante, alguma coisa soltara-se na alma da paciente e o significado liberado pela palavra “choque” resvalava em tudo que é fio de alma, em tudo que é beirada de alma, em todo tipo de parte de alma. E foi então, que a alma da paciente encolheu-se e, quando encolheu, absorveu, e quando absorveu, deu para esticar novamente: foi se alastrando, foi crescendo, tornou-se elástica, como toda alma.

Mariana percebia o que se passava, e alegrou-se, e calou-se, e esperou. A tentação da interpretação rastejou pela sala, mas foi algo repentino, bem passageiro. O efeito espraiava-fermentando, a explicação seria desnecessária. Ali sentadas, da Ninfomaníaca veio a Vítima, mas não permaneceu mais do que alguns minutos; depois, foi a vez da Criança, depois da Normal, depois da Ninfomaníaca novamente.

Mariana sentiu que era bom sinal aquela alteração na dinâmica da sessão, parecia que era a vez da Ninfomaníaca manifestar-se e que as outras – generosamente – cediam espaço a ela; mais um enigma, pensou a estagiária e tratou de desistir de decifrá-lo. O que sabia é que a modificação se dera em decorrência do modo como se relacionou com a Ninfomaníaca: parecia mágica aquilo, ela a atingira em cheio porque possibilitava uma existência plena, de alma acoplada, que ecoa, que contém, que espelha, que traduz.

Aquele funcionamento também facilitava as coisas para a bela-cantora porque a cansava menos, já que se concentrava apenas num formato de Helena. O silêncio foi outra novidade da tão esperada segunda sessão: depois da fala bem dita, ele viera para ficar; tanto que na terceira aparição da devoradora-de-homens, as duas nada disseram, apenas olhavam pela janela e refletiam, silenciosamente.

“Eu preciso saber se você toma os remédios que o médico recomendou”, disse assim que a Normal reapareceu. “Religiosamente, minha terapeuta; eu quero melhorar”, havia um tom de carinho naquela voz que a aprendiz tratou de aproveitar. “Vejo esperança na sua voz, gosto disso”. “Eu resolvi lutar, Mariana, não sei do resultado, mas que vou lutar, vou”. Assim que terminou a frase, virou a cabeça lentamente e quando voltou a falar já era outra, a Louca.

A estagiária colocou-se de sobreaviso, era a versão que mais temia. Dessa vez, não veio a convulsão. A mulher de Daniel subiu na cadeira, agachou, abriu os braços e disse que era um anjo, e que estava no topo de uma das árvores mais altas do Parque Assunção. Ela, de lá, observava as pessoas e lia seus pensamentos, passou então a narrar um ou outro pensamento; depois, fazia uma previsão sobre o destino dos mortais que andavam por alamedas tão belas, tão assim de manhãzinha.

“A imagem da loucura é sempre incômoda”, pensou enquanto se mantinha em alerta para agir, diante da menor suspeita de perigo. Nada aconteceu nesse sentido, pois a Normal retornou em seguida e a estagiária aproveitou para comunicar: “eu preciso conversar a sós com Daniel; devo orientá-lo e esclarecer algumas coisas, você se incomoda?” “Não, fique à vontade”. “Você me espera aqui, então?” “Sim, chefinha, e sorriu, pela primeira vez.”

Na sala ao lado, Mariana explicou o necessário para o marido certinho. A praticidade das perguntas serviu de alento porque encurtava a conversa e porque as explicações vinham acompanhadas de indicações sobre estratégias de ação. Daniel era um homem inteligente, pois mesmo que não compreendesse determinada coisa, estabelecia rapidamente um tipo de apreciação que lhe garantia referências para localizar-se: diante do que Mariana dizia, por exemplo, não ofereceu a menor resistência.

A estagiária apreciou essa qualidade e passou a vê-lo com mais condescendência, surgindo até uma tímida simpatia. A cantora-de-bela-voz insistiu na preservação das crianças e solicitou que Helena não ficasse sozinha, alguém deveria vigiá-la discretamente. Daniel demonstrava evidente alívio na medida em que a conversa avançava: depois de meses, pela primeira vez, sentiu que aquelas pessoas entendiam do riscado. Ele sorriu, e Mariana o “viu” despido do traje maternal. Era um exemplar e tanto, espetacular; a moça se recompôs.

Depois de mais acordos, a plantonista retornou para Helena e despediram-se. O casal partiu.

 

         – A supervisão

“Aconteceu algo muito estranho, professor! Eu aprendi uma nova maneira de compreender a paciente: eu ‘vejo’ o fenômeno. É involuntário e parece um presságio… Não é esquisito”?  “É uma compreensão súbita, não é? Como um ‘clarão’, assim…uma espécie de aparição de imagem”. Ele falou contente. Mariana ficou perplexa, “como este homem pode ser tão preciso?” “É uma forma de compreensão regida pela intuição, moça, aliás, uma poderosa intuição”, continuou.

“É uma forma de compreensão em que o raciocínio vem instantaneamente e apresenta o fenômeno como um todo, na sua essência. É, portanto, a melhor maneira de compreender algo porque capta a verdade do fenômeno: é como olhar para algo e ver do que realmente se constitui”.  Mariana não conseguiu articular uma palavra sequer, faltou o ar, faltou…

“Você entendeu o porquê da eficácia da sua intervenção?” Perguntou enquanto olhava fixamente dentro de seus olhos. “Uma parte sim, mas eu não sei traduzir…” “A ninfomaníaca investe no marido-bonzinho uma potente agressividade, no entanto, por amá-lo, ressente pela possibilidade de destruir seu objeto de amor. Uma parte desse medo transforma-se em culpa e uma parte dessa culpa transforma-se em auto-agressividade. Ao destruir-se, ela ficaria livre da culpa de destruí-lo; penso que estamos diante de um dos mecanismos que a conduz à loucura. Ela se desintegraria para poupá-lo”.

“Meu Deus!” A estagiária exclamou. “Eu vi exatamente isso, professor. Eu vi todas as particularidades disso, detalhadamente, com ação e reação, com conseqüências, revelando determinadas escolhas”. “Não se perca no deslumbramento de ver desse modo, seria perigoso; simplifique, volte ao comum, à percepção cotidiana. Volte!” A aluna levou um susto, suspirou e pediu um copo d’água; havia retornado.

“Em relação ao psiquiatra”, disse depois de alguns minutos, “gostei da conversa. Ele insiste no tratamento psicológico, diz que os remédios apenas acalmam a ansiedade e controlam a impulsividade de Helena; as dosagens também são baixas para que possa manter-se lúcida. É isso.” “Excelente, a percepção dele combina com a nossa; prosseguimos, então?” “Huh, claro.”

 

 

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