Helenas – Parte I

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– O encontro

Eles chegaram num dia tumultuado de Plantão. Fazia muito frio e diversos pacientes aguardavam o atendimento. O homem alto e bem vestido atravessou o grande portão caminhando lentamente; um tanto curvado, com os braços segurando – com firmeza – uma pessoa, demonstrava carinho e preocupação. Ao avançar, de vez em quando, ele parava para avaliar o que acontecia ao redor e, depois, confiante, prosseguia com segurança, com altivez.

Era notório que o “condutor” cuidava para não fazer um movimento abrupto e mais adiante, ao se deparar com a porta de vidro, por um instante, não soube como proceder. Então parou, olhou para dentro, pediu ajuda com os olhos, aguardou; a moça em seus braços se encolheu mais, parecia pequena, parecia fraca, estava semi-desfalecida. A ajuda veio de fora mesmo, o segurança da Clínica adiantou-se e abriu a porta; o homem agradeceu, eles entraram.

Na sala repleta, o burburinho cessou como por encanto e todos os olhos voltaram-se para o casal: a moça estacou, parecia decidida a não-continuar, ele parou novamente, perguntou algo numa voz doce, sussurrante; ela desfez a resistência, prosseguiram. A secretária levantou-se, ajeitou um lugar bem próximo da mesa em que estava e fez sinal para que se aproximassem. Ao chegar, de forma delicada, o homem fez menção de colocar a mulher na cadeira, mas ela então, agarrou-se mais ainda em suas roupas e agora, dava para ver que apertava a sua barriga.

“Pois não”, disse a secretária tentando interferir na situação, “se eu puder ajudar…” “Não se incomode, eu me ajeito. Helena precisa de um psicólogo, eu sou o marido, muito prazer, Daniel Rodriguez Ortega, veio indicada pelo psiquiatra, o nome da minha esposa é Helena de Sousa Ortega, se puder ser atendida o mais rápido possível, eu agradeço”. Falou tudo isso, sorriu, estendeu a mão e foi se ajeitando com a mulher. Ele encostou-se na parede, curvou-se, apoiou uma das pernas no descanso da cadeira permitindo assim que Helena ficasse sentada e encostada ao mesmo tempo.

A moça deixou de apertar a barriga do marido e, pela primeira vez, sentiu-se confortável; lentamente, mexeu a cabeça e ousou vistoriar o ambiente: constatou que diversas pessoas olhavam para ela e, rapidamente, num movimento abrupto, escondeu o rosto entre a camisa e o paletó de Daniel. Todos os pacientes que, perplexos, acompanhavam a entrada enigmática do casal, perguntaram-se, automaticamente, naquele exato instante, em sintonia, qual seria o problema da mulher-dependurada-no-marido.

“Ela parecia… ela parecia… com o que ela se parece?” A face única de cada paciente incorporada à face única do grupo de pacientes tentava identificar com o que parecia aqueles dois sendo um. “Ela se parece com algo menos que uma criança”, poderia ser uma boa definição. “Ela parece se constituir numa parte dele”, também poderiam cogitar. A mulher, tal como Daniel, trajava roupas bonitas, caras; ela usava – ainda – sandálias de salto alto e como é que alguém nessas condições consegue usar aquelas sandálias!? As formas do corpo e até mesmo a altura de Helena não dava para precisar devido ao grau de “retraimento” e de “aderência” ao marido; mas o tom de pele dava para saber, era de uma morenice carioca, de mulata.

A face única do grupo de pacientes levou um susto de curiosidade quando Daniel, ao tentar retirar o documento de identidade da carteira, teve de se mover e a bolsa de Helena escorregou do meio da “aderência” deles, caindo – aberta – à vista de todos. Batons rolaram pela sala, algumas páginas soltaram-se de uma pequena caderneta de endereços e um espelhinho bonito, rosa-choque, abriu-se. O marido pediu auxílio, mais uma vez, através do olhar, e uma adolescente prontificou-se a juntar os pertences e devolvê-los: a sofisticada bolsa foi entregue minutos depois, ao onipresente marido que já passava os dados para a secretária.

“Ela pode ser atendida primeiro?” Perguntou a funcionária que, tal como os outros, esforçava-se para compreender o que se passava sem, no entanto, obter sucesso. Daniel lançou outro olhar para os pacientes-espectadores, havia dignidade naqueles olhos e também transparecia uma súplica comedida, tímida: a cabeça única do grupo de pacientes balançou afirmativamente. “Vou chamar a estagiária”, e saiu apressada.

 

– A decisão

Ao chegar à sala de alunos, a funcionária deparou-se com quatro estagiárias esperando as fichas de pacientes. “É uma emergência, um casal chegou e a mulher está toda encolhida; praticamente veio carregada pelo marido. É indicação psiquiátrica, não consegui saber mais nada; sugiro que a ficha seja preenchida no final do atendimento, por ela ou pelo marido. Quem se habilita?” As alunas queriam fazer perguntas, mas pela tonalidade de voz da secretária, perceberam que a situação era crítica, entreolharam-se. De repente, Mariana disse: “eu vou, preciso apenas de dois minutos de concentração”.

“Boa sorte!” Desejou Beatriz enquanto voltava para a sala de espera. Mariana respirou fundo, bebeu um copo d’água: “mais uma mulher”, pensou, “só atendo mulheres no Plantão, por que será?” As outras alunas, disfarçadamente aliviadas, agora, desejavam acompanhar o desenrolar dos acontecimentos: empenhadas em decifrar as importantes pistas deixadas pelos pacientes no primeiro contato com a Instituição, sentiam que aquela entrada enigmática prometia, ah, se prometia…

Mariana, para evitar especulações, caminhou rapidamente para a sala de espera e chamou por Helena. Antes mesmo de colocar os olhos no casal, a aprendiz reparou que o silêncio era imperioso, “que estranho”, pensou; e foi impedida de continuar suas conjecturas porque ouviu a voz de Daniel, “muito prazer! Eu sou o marido, precisamos de seus cuidados”. Os olhos da aprendiz caíram sobre o homem alto e bem vestido, ele sorria. A face única dos pacientes voltou-se para a futura-psicóloga, queriam ver sua reação.

Mariana compreendeu que o silêncio era resultado da convergência do direcionamento de todos os olhares e viu-se dentro da trama, sendo vista. Demorou alguns segundos para se localizar, deveria tomar cuidado, pois, tudo que fizesse, a partir daquele instante, passava a interferir numa história alheia, desconhecida ainda, comportando, provavelmente, intenso sofrimento. O sorriso de Daniel pareceu-lhe franco demais, positivo demais, quase singelo e, por causa disso, sentiu desconforto: suas maneiras e perfume, sua pele clara e músculos, discretamente-disfarçados pela roupa cara, evidenciavam uma masculinidade bem construída, bem intencionada, reprodutora.

“Um homem maternal”, pensou, “virilmente maternal”. E isso causa certa confusão na indecisão, na falta de preparo e na insegurança”. Mariana foi, mais uma vez, obrigada a interromper os pensamentos porque ele se esticou e estendeu a mão, a estagiária devolveu o gesto. “Um homem bonito, novo, dedicado, isso tanto salva quanto pode colocar em risco”, ainda conseguiu formular. “Essa é Helena.” O psiquiatra nos enviou aqui, dizendo que ela precisa urgente de psicoterapia”. Mariana olhou para baixo, a mulher estava “agarrada” ao marido, mal se viam seus braços, enrolados no paletó, e mal se viam suas pernas porque a curvatura do marido as encobria. Daniel colocou o rosto dentro do próprio peito e sussurrou algumas palavras, depois levantou a cabeça e perguntou, “qual o seu nome?” “Mariana”; ele repetiu o movimento anterior, sussurrou e, com evidente expressão de alívio, declarou: “ela gostou de você!”.

Os presentes aumentaram de estupefação, o silêncio; não se ouvia nenhum som de dentro das roupas de Daniel. Como é que eles se comunicavam então? Mariana olhou para a secretária, que olhou para Daniel, que voltou a enfiar a cabeça em si mesmo. “Ela quer saber sua idade”; “30 anos”, foi a resposta; depois de um tempo, com a cabeça enfiada, afirmou: “estamos aguardando suas orientações, doutora”. “Me sigam, por favor,” disse a estagiária e indicou o caminho a ser percorrido; os pacientes repararam que Helena resistiu menos, dessa vez, o que facilitou a tarefa de Daniel, que podia, enfim, andar com mais facilidade.

 

– A sessão mesmo

Mariana escolhera uma sala de atendimento, próxima da sala de espera, para justamente, facilitar o acesso do casal; não demoraram e mesmo assim, a aprendiz, viu rostos curiosos pelo percurso; se pudesse, também ficaria a observar – à distância – aqueles dois andando como se fossem um. Ao abrir a porta, percebeu que Helena cobria a cabeça com um véu, é que da camisa impecavelmente branca de Daniel escapava a ponta de um lenço colorido, brilhante, de encher os olhos.

O casal entrou e os dois sentaram-se. A paciente desvencilhou-se da camisa do marido e ocupou uma cadeira, mantendo-se curvada e retorcida, com as mãos nas pernas dele e com a cabeça levemente erguida, voltada para a parede. Mariana agora, conseguia identificar outra pessoa ali, se bem que o lenço-véu ainda ocultava sua face e seus cabelos; estava bem vestida, de salto alto, pele morena, mais baixa que o marido se supunha.

Daniel retirou um lenço do bolso, passou sobre a testa, se recompôs como pôde e relatou: “eu não sei dizer o que se passa, ela tem apresentado, de dois meses para cá, comportamentos estranhos; também reclama de dores pelo corpo, já desmaiou três vezes, anda esquecida e aérea, depois se irrita do nada e briga comigo, com as crianças”.

“Que idade têm as crianças?” “São três, uma de outro relacionamento da Helena, a Clara, que tem 10 anos; os outros dois são nossos, o Marcos, de 07 anos e a Paula, de 04”. “Há quanto tempo estão casados?” “Há oito anos”. Helena, nessa hora, puxou um pouco o lenço e olhou para o marido, ele se curvou, sussurrou algo, a mulher parecia piscar acentuadamente. Mariana, mesmo tão próxima, não compreendia, não decifrava que forma de comunicação era aquela.

Daniel mencionou a sua decisão de consultar um psiquiatra e enfatizou o receio da esposa de enlouquecer; acrescentou a isso as fortes dores de cabeça e o adormecimento, há uma semana, do lado direito do corpo. Nessa hora, um espasmo se deu na parte do rosto que quase encostava no colo de Daniel e a paciente se contorceu; o marido se “reorganizou” para conter a movimentação física e continuou, pausadamente, seu relato. Mariana, se pudesse, ficaria entretida observando a performance do casal: era “um acontecimento” aquela composição, despertava uma curiosidade muda, visualmente-cúmplice.

E então, pressentiu que aquilo ia longe, poderia durar o dia todo, se fosse o caso. Resolveu cortar pela raiz, queria ficar só com Helena. Daniel assustou-se, mas não se atreveu a colocar qualquer obstáculo, apenas abaixou-se e sussurrou; depois foi saindo devagar, olhando as duas, a mulher na mesma posição, ele disposto a voltar se precisasse. Saiu.

Então Helena ergueu-se, ajeitou-se na cadeira, arrumou seu lindo lenço e falou: “Oi Mariana, gostei de você e gostei de me consultar com uma mulher, temos muito o que dizer uma para a outra.”

A aprendiz sentiu as pernas bambearem e só não demonstrou o susto porque estava acostumada com improvisos e “saias-justas”: vocalista de uma banda, há mais de dez anos e considerando-se uma cantora profissional, aprendera a enfrentar o público a cada apresentação, em cada música interpretada. Quando Helena ergueu-se, foi como enfrentar um público hostil tendo de ocultar algumas sensações, mostrando outras (agindo assim para não sucumbir, para impor respeito-na-presença).

E o que pensou é que estava vendo coisas ou, então, que o início acontecia exatamente naquele instante. Para piorar, perdeu-se na contemplação do magnífico lenço: “em que lugar encontrou essa peça?” E da frivolidade desconcertante, viu-se decomposta em vaidade: teve de respirar lentamente para localizar-se, mais uma vez.

“A minha história é triste, uma sucessão de acontecimentos ruins; desde pequena, sabe, doutora!? A minha mãe morreu quando eu ainda era bebê e o meu pai, esse se envolveu com drogas, na minha adolescência; na verdade, ele vendia drogas,” destacou a paciente num tom sussurrante, de gente eterna-vítima-das-circunstâncias. “E as ameaças foram muitas por causa disso, perdi a conta de quantas vezes tivemos que mudar de casa, meio que fugindo, sabe?”

Mariana, intuitivamente, ajustou-se: “uma comunicação restrita ao par em que o marido-maternal fala, e uma história trágica que produz uma condição de não-saída. É isso, só isso”. Com o “só isso”, a estagiária queria reafirmar seu lugar-compreensão, de função terapêutica, já que Helena se constituía num turbilhão de possibilidades, desvios e enigmas. A paciente não parava de falar, porém, o que ficava evidente pelo tom de voz da moça-vítima era o acentuado consolo pela condição tragicamente definida e um orgulho resignado pela não-escolha. Não aparecia o ódio ou a revolta, nem a dor pungente; havia uma lisura úmida, escorregadia.

A plantonista fez perguntas, teceu considerações, porém, sabia, de antemão, que não atingiria Helena: a moça-do-lenço-colorido manteve o mesmo discurso, desconsiderou as intervenções, falava apenas para mostrar que estava alojada e sem ressentimentos. A vocalista-psicóloga desconfiou da condição “sublimada” da vivência de não-saída, mas nada podia fazer, teria que esperar, deveria aguardar.

Ela esfregou as mãos, o frio continuava intenso, um grau positivo, anunciaram no rádio, pela manhã; de repente, olhou pela janela e viu a neblina forte, densa. Voltou novamente o rosto na direção de Helena e viu-a em pé, muito perto, a observá-la; quis afastar sua cadeira, mas a mulher de Daniel foi mais rápida e deu um passo para trás.

A paciente, então, com a mão direita, foi lentamente tirando o lenço colorido e deixou cair sobre os ombros uma vasta cabeleira negra; mexeu, com graça, a cabeça e os cachos se assentaram, então, disse: “Doutora!?” Mariana podia jurar que estava vendo coisas novamente: “o que se passava ali?” Helena começou a andar pela sala falando numa tonalidade de voz rouca, melodiosa, sensual; parecia que iria iniciar uma performance, um strip-tease melhor dizendo.

Mariana, atordoada, procurou a outra, a vítima, “onde ela está?” Nada sobrara, “onde ela está?” Nenhum vestígio, “onde ela está?” Nenhuma fase intermediária, “onde ela está?” Nada, nada, nada. Ela, simplesmente, desaparecera…

“Somos tão parecidas, você não acha?” Disse a bela mulata, em pé, a meio metro, um tanto curvada para frente, a se oferecer: “a mesma cor de pele, os mesmos cabelos, se bem que os meus são mais cheios, longos, mais escuros; e essa pinta, não acreditei quando vi que era do mesmo lado, sabe!”. Mariana levou a mão automaticamente à boca, havia uma pinta sim, sua companheira de décadas, um tanto charmosa, evidentemente, mas de um valor surpreendente naquele instante: capaz de “derrubar” macho – pensou involuntariamente.

“Vem cá, me confidencia aqui ao pé da orelha, tem coisa melhor do que sexo?” E então a moça se aproximou e quase encostou seu rosto no rosto de Mariana. A estagiária não respondeu por um triz, viu-se traindo a si mesma e, esbarrando no instante derradeiro, sentiu um calafrio que salvou a situação porque fez com que permanecesse de boca fechada. Helena soltou uma gargalhada, afastou-se e começou a falar de preconceito racial, de violência sexual, de um aborto que teve de fazer, e do casamento que deu a ela a possibilidade de “fornicar” com a benção de todos e da Igreja. Riu mais alto.

Mariana olhou para aquela mulher e viu a encarnação do sexo; e então, compreendeu que não se tratava de representação: Helena tinha assumido até ali, de um instante para outro, três versões de si mesma… A aprendiz não conseguia dar continuidade a seus pensamentos, não conseguia discernir o que sentia, estava em desconcerto-puro; a situação era crítica, o que se faz com uma mulher que vai se desdobrando em várias?

E resolveu reparar naquela que estava bem à frente: “era uma profissional do sexo”, pensava. Ao ajustar sua capacidade investigativa, considerava pobre sua definição, “é mais que isso, é outra coisa, outra coisa…” E tentou fazer com que sua intuição pudesse auxiliá-la, estava tão confusa que até precisava de esforço para relaxar, para distrair-se, para… “Uma ninfomaníaca, é isso, eis o que vejo; por isso esse apelo quase irresistível, essa potência avassaladora, essa feminilidade exclusivamente erótica”.

A compreensão do que via fez com que ganhasse um pouco de tempo e tranqüilidade; não servia de nada para intervir, mas servia para não se perder; pelo menos, sabia o que tinha diante de si. As histórias “contadas” pelas três versões eram distintas, não se percebia ligação entre uma e outra; e tal qual as aparições, vinham recortadas, autônomas, independentes. A vocalista poderia costurá-las, mas seria um trabalho seu, posterior, e nesse instante, percebeu que a paciente é quem deveria juntá-las, transformá-las na mesma coisa.

Mariana discretamente sorriu, havia descoberto o caminho: Helena deveria, afetivamente, juntar as três mulheres que habitavam sua alma. “Ótimo, mas como?” Isso a irritava na psicologia, uma descoberta valiosa como aquela não modificava em nada a situação das duas; cada enigma desvendado apresentava outros, que, por sua vez, induzia a outros, que, provavelmente, indicaria mais alguns, era sempre assim.

“Eu não tenho amigas, nunca tive e sabe por quê? Elas sentem ódio ou inveja de mim. Por causa dos homens, que me rodeiam, que me querem; que perdem o controle quando se aproximam. Desde pequena, desde os seis anos de idade, já era assim: um primo adolescente, por parte de pai, começou me passando a mão e terminou tentando me penetrar, mas não teve coragem de ir até o fim, deve ter ido até o meio – é o que lembro. Eu sentia dor e prazer; meninota de tudo eu era, mas já batia um bolão, viu”!?

Mariana não dissera uma palavra sequer, acompanhava a Helena-ninfomaníaca com interesse e precaução, mas ajustadamente-emudecida, dando vazão à parte-lúcida-da-ninfomania. A estagiária quase riu quando se qualificou assim, mas era exatamente o que sentia, e Helena tinha razão quando dissera que eram iguais, na verdade, todas as mulheres são muito semelhantes, pois, são feitas da mesma matéria. Mariana nunca duvidara disso, nem tinha o menor problema com as questões que envolvem o feminino; ela, de vez em quando, se surpreendia porque, ao vasculhar o passado, encontrava prontas as soluções para os diversos conflitos relacionados à vivência do feminino.

Aquilo era curioso e talvez “fazer psicologia” desse a ela a oportunidade para compreender as razões de tanta descomplicação e, ainda, poderia se constituir num raro instrumento de auxílio às mulheres. Era como se todas as mulheres coubessem nela, já que encarnava as versões resolvidas, proveitosas e positivas da alma-corpo femininos.

Cantar era justamente isso, mas muito separado, cada condição-de-mulher na sua singularidade. Mariana precisava de mais, precisava ver através de outra mulher, precisava complicar para sentir o diferente-feminino: era uma alma feminina ávida das inúmeras facetas possíveis de ser mulher, usufruindo da mesma temporalidade, complicando.

 

– As outras Helenas

E diante dessa valiosa e inesperada descoberta (acontecida exatamente naquele instante), ficou, pela primeira vez, feliz na presença de Helena: a obrigação de atender e a vontade de ser competente não tinham que ver com o prazer de estar ao lado de um paciente. A estagiária-que-canta que, por obrigação e gosto pelo desafio, começara a atender uma mulher dependurada no marido, agora, estava francamente feliz por relacionar-se com uma mulata ninfomaníaca que desfilava pela sala de atendimento falando – obviamente – de sexo numa voz melodiosa, sensual.

Mariana de-feliz ficou também à vontade, e agora desejava compreender – no todo – o que se passava. E foi justo no instante em que se fez silêncio entre elas, que Helena foi caminhando devagar para um canto da sala e sentou-se, tirando a sandália de salto alto, abaixando a cabeça e deixando de mover-se. A aprendiz suspeitou de mais uma versão, mas qual seria? Permaneceu onde estava; a paciente prendeu o cabelo com uma fita que trazia amarrada numa parte do vestido e começou a cantarolar “o cravo brigou com a rosa” numa voz tristonha, infantil, comovente.

Helena, agora, meninota-de-tudo, balançava o corpo para lá e para cá; e cantava e cantava, aumentando o entusiasmo. Mariana estava assombrada com a diferença entre as vozes: “como ela consegue?” A especialista em voz, aguçou os ouvidos “esta voz é de criança. Como ela consegue?” E, por alguns minutos, ficou a ouvi-la, absorta, admirada, paralisada. Depois, não sabendo bem o porquê, levantou-se e sentou-se ao lado da Helena-menina e cantou junto, embalada pela voz suavemente-triste. A paciente então olhou para ela, sorriu e perguntou se tinha alguma boneca ali; “aqui não, tem noutra sala”. Helena inclinou a cabeça encostando-se no ombro da estagiária e cantou “atirei o pau no gato”.

“Eu tenho vinte e cinco bonecas, brinco com elas todos os dias, de tardezinha; tem uma que vai se casar, ela é tão bonita, é rica e é atriz”. “Qual o nome dela?” Perguntou Mariana; “Pamela”, em seguida, falou dos preparativos para o casamento e falou das outras bonecas e riu. Porque uma delas estava doente, chorou, e depois riu de novo e, mais uma vez, cantou.

Meia hora depois ainda estavam na mesma posição e a plantonista se perguntou quantas Helenas existiriam e se deveria terminar a sessão somente depois de ter sido apresentada a todas. “Até agora são quatro; duas horas de atendimento e não tenho a menor idéia do que virá a seguir”. Nesse momento, lembrou-se de Daniel, “o que estará fazendo, o que estará pensando?”

“E aquela platéia de pacientes? A essa altura, com certeza, já se desfez; foram atendidos e partiram; talvez um ou outro, em seus retornos, pergunte para a secretária o que foi feito, afinal de contas, da mulher “dependurada” no marido. E Mariana também pensou em suas colegas, roendo-se de curiosidade para conhecer os detalhes daquela misteriosa história. “E como saberei que já vi todas as Helenas? E o que farei para que possa juntar todas as versões? E o que direi ao marido quando este atendimento acabar? Será que ele sabe o que acontece aqui? ”

A aprendiz ainda não conseguira conversar com Helena, o que tornava as coisas mais difíceis. É que nenhuma daquelas versões se prestava ao diálogo, parecia que apenas queriam “existir”, exibindo-se numa existência recente e um tanto “aflita”, e que precisavam fazer isso na presença de outra mulher. “Eu duvido que Daniel saiba, ele teria ficado muito assustado; aqui é o lugar, aqui é o melhor lugar”.

Mariana sentiu uma ponta de esperança ao pensar que aquela poderia ser a primeira manifestação das Helenas; se fosse isso mesmo suspeitava de uma adequação, de uma sabedoria com intenção de modificar o que precisava ser modificado. A vocalista também não compreendia como se dava a passagem de uma para a outra, quando e por que cediam a vez; aparentemente, não havia indícios que aconteceria.

A plantonista gostou da menina Helena, que era doce, de muita imaginação e necessitada de reconhecimento. Ela apresentava gestos delicados, graciosos e femininos; a pureza das crianças estava fortemente presente e pouca coisa comovia tanto Mariana quanto a ingenuidade infantil. A cantora-de-bela-voz era capaz de permanecer horas na companhia de crianças para disso usufruir, para nisso se envolver, para também participar. Aquilo era uma dádiva dos céus, um presente dos deuses, uma coisa posta no mundo para consolar corações e permitir a renovação da alma: “um bálsamo”, resumia.

 

– Helenas, ainda mais

E foi quando já estava se distraindo com o ambiente infantil daquela parte do encontro que, Mariana, identificou um vestígio de outra coisa no ar: olhou para a paciente e constatou que calçava novamente as sandálias. A mulher fez alguns movimentos para esticar braços e pernas, mexeu delicadamente o pescoço, sentou-se e disse: “muito prazer, eu sou Helena e preciso de sua ajuda”. A voz era, evidentemente, outra e a tonalidade, grave, séria, concentrada.

“Eu estou enlouquecendo, tenho sentido coisas muito estranhas e tenho tido pensamentos de morte, de destruição. Como o meu marido já disse a você, tenho ficado nervosa do nada, tenho tido desmaios e aparecem fortes dores pelo corpo até tudo ficar anestesiado, depois vêm umas ausências de memória. Estou preocupada, Mariana. A consulta com o psiquiatra foi boa para acalmar Daniel, mas para mim não teve serventia; eu precisava é de ser atendida por uma mulher feito você: forte, séria, múltipla, bonita”.

“E como posso ajudá-la?” “Isso eu não sei, sinceramente não sei.” E então, chorou. A plantonista sentiu que estava falando com a Helena capaz-de-diálogo, quase gritou de alegria; agora poderia compreender o que se passava, agora poderia se comportar como gente normal; poderia, enfim, conversar. “Você sabe o que está acontecendo aqui?” “Sei, e estou tão surpresa quanto você. Antes não chegava a tanto, eu não modificava a voz nem fazia tantos trejeitos; era uma espécie de encenação em que eu me imaginava diferente, fazendo coisas diferentes.” “O que sentia quando agia feito criança”? “Eu me sentia como criança e não queria deixar de ser criança, queria continuar assim, para sempre”.

“Você perde a noção do restante?” “Sim e não, e não sei explicar”. “Enquanto você vivenciava uma versão sabia que existiam outras?” “Sabia, mas a que predominava fazia força para esquecer; eu vou enlouquecer, Mariana, sinto que vou. Tudo isso é mais forte do que eu, elas vão e vêm e tenho medo que fiquem mais e mais, obrigando o Daniel a me internar”. “Você o ama?” “É mais que isso, eu não sobrevivo sem ele; e Deus sabe que eu não o mereço; Deus sabe o quanto de sacrifício tenho feito para me manter razoável, boa mãe, uma mulher decente”.

A plantonista fixou bem o olhar e disse: “me diga com sinceridade, Helena, o que é uma mulher decente?” “Você sabe muito bem” e a resposta saiu ríspida, cortante; “eu não sei, me diga”; “ora, ora, moça, desde que o mundo é mundo todos sabem”, falou com desdém; “eu faço parte do mundo e ainda não sei, me diga”. “É uma mulher honesta, dedicada, que ama seus filhos e marido acima de qualquer outra coisa. É isso, sendo prática, milenarmente prática.” “Você definiu as mulheres a partir da relação com os homens…” disse a aprendiz num tom vago, neutro, quase conciliador. “E tem outro jeito de ser mulher?” Veio a constestação. “Talvez não…” e ficou quieta, calada.

Além de emudecer, a vocalista olhou pela janela, queria demonstrar leveza, muita segurança e uma displicência-não-ofensiva; ela queria sugerir com-gestos-simples-e-delicados que detinha a resposta para uma dificílima questão. Apareceu o silêncio. Helena também olhou pela janela e aproveitou o silêncio para refletir, e se aquele era o lugar para lançar-se de forma tão variada, também poderia ser o lugar para, verdadeiramente, refletir ao lado de alguém.

E foi assim que fez um retrospecto de sua vida: revirou episódios, despiu ilusões, alegrou-se com o nascimento dos filhos, os três. Seu olhar ficou difuso e a mulher de Daniel podia visitar o passado dentro e fora de si mesma (revestido de afeto ou espelhado na reflexão): aquilo tanto fazia parte do mundo-de-todos como constituía um mundo-só-dela. E refletia, refletia, refletia… E ouvia a respiração de Mariana, desdobrada em dentro e fora… Tão próximo, ao alcance dos seus gestos, havia outra mulher, silenciosamente viva, desdobrada em dentro e fora… E o frio compartilhado, naquele dia, se desdobrava em dentro e fora… E, por um instante, muito de repente, de um reticente-nada, uma esperança frágil ousou acenar – timidamente – de dentro para fora e houve um sacolejão e Helena caiu, retorcida.

A plantonista soltou um grito, tremia; e ao perceber que a paciente iria começar a se debater, rapidamente, instintivamente, ajoelhou-se, prendendo o corpo da mulher entre suas pernas; em seguida, se debruçou sobre ela juntando os braços e segurando com força, toda. Helena explodiu numa convulsão violenta, contorcendo-se. Mariana tentava prender entre os dedos a língua da paciente enquanto as pernas da mulata sacolejavam; a aprendiz precisou de mais força, agora as duas se enfrentavam: uma enfurecida, querendo arrebentar e a outra, assustada, necessitando conter. Assim ficaram não se sabe quanto tempo: duas mulheres abraçadas, deitadas no chão frio de uma Clínica-escola, medindo força, num dia de neblina densa, envolvente.

 

–   Helenas, mais nenhuma.

Aos poucos, os movimentos da mulata cessaram e ela ficou inerte; Mariana aguardou alguns instantes para ter certeza de que deveria soltá-la e arriscou; a moça permaneceu quieta. A plantonista suspirou e estava tão sintonizada com a situação que tinha certeza de que aquela versão tinha mais coisas a mostrar. Aguardou. E estava profundamente impressionada com sua capacidade de aguardar, era isso o que fazia todo o tempo ao lado de Helena: esperava.

A paciente não demorou a mover-se, remexeu daqui e dali, levantou a cabeça, olhou em volta, tinha um olhar assustado, que nada fixava. “Eis a louca”, pensou Mariana e teve receio do que ainda pudesse eclodir, por isso preparou-se. A mulher esticou a mão pedindo ajuda e levantou-se, estava descabelada, amarrotada, parecia que acabara de fugir do manicômio. Uma vez em pé, tossiu uma tosse comovente, de tuberculoso crônico e Mariana não gostou nada do calafrio que percorreu seu corpo.

Depois de tossir, começou a falar frases desconexas, sem sentido, pela metade; às vezes, nem frases chegavam a ser, eram palavras soltas, que pareciam pertencer a outro idioma, e foi falando. De começo, bem baixinho, de repente, muito alto, quase gritando e girou para a esquerda dez vezes, depois, para a direita, vinte. “Completamente louca”, pensou a estagiária e se não fosse seu estágio no hospital psiquiátrico anos antes, teria encerrado o atendimento ali mesmo, chamando o marido e dizendo que marcaria uma consulta com o psiquiatra da Clínica e que, então, resolvessem por lá.

A paciente, de tagarela, ficou muda. Passou a mão direita pelas paredes da sala, escolheu um canto e ficou virada para ele; de repente, começou a chorar. Mariana aproximou-se e colocou a mão em seu ombro, o choro veio forte e as lágrimas caíam, caíam, caíam… Ela soluçava, e o choro virou um lamento e a vocalista teve de fazer força para também não chorar.

A estagiária sentiu que se aproximava do seu limite, não agüentaria mais reviravoltas e abismos, precisava descansar e desejou desesperadamente que aquele atendimento chegasse ao fim. “Se aparecer mais alguma, eu não terei forças para interagir, eu não terei…”

E respirou fundo e tentou cantar mentalmente uma de suas canções favoritas, e tentou… “Obrigado, doutora, a minha alma, há muito tempo não sabia o que era um minuto de paz”, falara a Helena-normal. A estagiária quase caiu de joelhos quando ouviu novamente a voz grave, concentrada; “elas estão se repetindo, terminou, terminou… Assim espero, terminou”, pensara. Então olhou firmemente para a mulher de Daniel e disse: “eu quero que volte daqui a dois dias, tudo bem?” “É você quem manda” e as duas se entreolharam com muita cumplicidade.

Helena, naquele olhar, parecia simples, talvez até conseguisse sorrir se precisasse, e Mariana estava satisfeita porque haviam conseguido um desfecho promissor e bem na hora. “Você chama o Daniel aqui?” Ela pediu; “claro, agora?” “Sim”, e a aprendiz abriu, aliviada, a porta do consultório não acreditando quando uma rajada de vento atingiu seu rosto… “Onde ele está?” Perguntou para Beatriz, que veio a seu encontro; “ali fora, vou chamá-lo; está tudo bem?” Ela mexeu a cabeça confirmando e esperou. Daniel apareceu em segundos, “está tudo bem?” “Está, eu marquei outra sessão para daqui dois dias, ok?” “Sim, claro, claro…” E entraram.

Helena estava na mesma posição em que o marido a havia deixado, três horas atrás; ele a ajeitou, ela o “agarrou” e, mais uma vez, o homem dedicado usou o olhar para consultar Mariana; “teremos que ter paciência, Daniel, na próxima sessão, eu converso um pouco com você; por hoje foi satisfatório”. Eis o que disse, e acompanhou-os e anotou a data do próximo encontro e se despediu.

–  O depois

Antes que retornasse para a sala de atendimento, a vocalista, exausta, pediu um café forte, com muito açúcar; estava exaurida. Beatriz e as colegas que permaneceram na Clínica, na tentativa de demonstrar apoio, rodearam-na percebendo que não conseguiria articular uma frase sequer. A moça pediu mais café, alguém ofereceu um chocolate, ela aceitou.

O tempo foi passando, o telefone da Clínica tocou, uma estagiária precisou imprimir relatórios e a vocalista permanecia calada, respirando lentamente, tentando juntar forças para reerguer-se. “Ela assumiu seis versões de si mesma”. “O que?” Outra aluna perguntou. “Aconteceu de tudo lá dentro”, foi a resposta; “ela se transformou em criança, em maluca, foi normal, ninfomaníaca, vítima e aquela que vocês viram, a fetal”.

“Ela representava esses papéis?” “Não, ela os vivia; com voz diferente, olhar próprio, gestos diferentes, com pedaços distintos de alma”. As alunas entreolharam-se, compreenderam a complexidade do que acontecera e decidiram silenciar; se Mariana continuasse o relato tudo bem, se não, apenas se certificariam de que estava em condição de voltar para casa, sozinha.

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