Martim Parte II – A transformação
PARTE II – A transformação
Três meses se passaram e Martim Lopes Prado se transformara consideravelmente. Ele fizera musculação, dieta, defesa pessoal, mudara o corte de cabelo e emagrecera dez quilos. Taís ainda não chegara a um acordo consigo sobre tudo aquilo, a delicada moça não sabia se aprovava as inesperadas modificações, e sua intuição, às vezes, condenava o que todos a sua volta aplaudiam e incentivavam.
Taís sabia que Martim tornara-se mais forte, mais bonito, mais atraente, mais charmoso e mais ágil. Isso era inegável, mas aquele homem preguiçoso e um tanto bonachão, tão seu e tão especial, não existia mais: o professor-de-inglês agora chamava a atenção na rua, atraía olhares, despertava coisas que antes não se manifestavam e isso provocava uma significativa alteração na relação dos dois.
Ele, pessoalmente, era o mesmo, e não se cansava de dizer que a amava sempre mais, a cada dia. O que era verdade e que também era estrategicamente repetido para que nenhuma desconfiança fosse alimentada; ele sentia que Taís, de vez em quando, o avaliava, e ficava a matutar sobre o que – realmente – estaria acontecendo. O trabalho de reconstrução que realizava não seria aceito docilmente por quem quer que fosse, muito menos pela pessoa com quem resolvera se casar. E era melhor que fosse assim porque se aprimorava em contornar as reações humanas.
Ele se divertia com o que passou a provocar nas pessoas simplesmente porque modificara a estética; “como são facilmente enganáveis”, constatava, não sem constrangimento: “bastam alguns quilos a menos, um punhado de músculos e um corte de cabelo diferente para ouvir suspiros e declarações; para que se ofereçam de modo previsível e sem graça”. O que ninguém podia imaginar era que almejava alcançar força e agilidade para se transformar numa máquina de matar, isso sim fazia diferença; e, contente, percebia que avançava: ganhou nos gestos uma objetividade tão consistente que parecia se relacionar com o mundo de outra maneira.
A disciplina e a força de vontade eram as responsáveis pela modificação: fazia exercícios três vezes por semana, treinava Aikido e, por fim, alterou seus hábitos alimentares, apesar de manter, sábado e domingo, o mesmo ritmo de “comilança” com Taís. O resultado era impressionante: parecia que seu pensamento e suas ações pertenciam a uma única categoria de expressão-movimento tendo a ação reflexa como forma privilegiada de articulação dessa extraordinária parceria.
Às vezes, o futuro-psicólogo, simplesmente fazia gestos pelo prazer de sentir a precisão dos movimentos, sua economia, sua funcionalidade. Chegou a imaginar que, guardadas as devidas proporções, “podia ver” o mundo através dos olhos de um leão ou de um tigre. A sensação que vislumbrava, nesses instantes, era de força absoluta, mais precisamente de uma potência agressiva distendida, relaxadamente-concentrada, capaz de se efetivar através dos movimentos visando uma parceria em que a morte vinha como necessidade de continuidade da vida.
E, ao sentir a perfeita sintonia dos gestos com a intenção deliberada, o moço sabia que, agora, habitava o básico e indispensável substrato da sobrevivência: é que quando se decide matar, corre-se o risco de morrer e – dessa perspectiva – há somente a estrita necessidade de manter-se vivo, com gestos, com o corpo, com músculos, com destreza, com força. Nenhum desvio há, nenhum porém haverá, nada de julgamentos porque a vida tem de ser mantida, mesmo a custo de outras vidas, se necessário for.
Era essa a metamorfose que Martim acionara, era esse o caminho que viabilizava dentro de seus ampliados músculos; era a lei da sobrevivência, presente em seu corpo-organismo que fazia ressoar e que mantinha consciente, letalmente-palpitante.
– A arma
As facas, ele as comprou numa feira de antiguidades de uma cidade próxima, num feriado de meio de semana, em que resolveram pegar o carro e andar sem destino. O namorado-da-Taís ficou “vidrado” com a coleção exposta à luz do dia, tão inocentemente encantadora, trabalhada e cara, à espera, para ser colhida na frente de todos. Não teve dúvida, comprou a seqüência que iniciava a coleção. Taís, que nunca pensara em colecionar armas, gostou das facas, eram belas e “impunham certa deferência”.
A naturalidade com que sua companheira aceitara a compra comoveu o futuro-assassino; era surpreendente o modo como ela “sentia” certas coisas. Era isso que o prendia: como deixar de desejar uma mulher que não teme nem se assusta com a intensidade das coisas? As três primeiras, o casal decidiu colocar na sala do apartamento, e ficou bonito, dava um toque “agressivo” (e luxuoso) à decoração; as outras três, Martim resolvera levar para a escola e as guardara numa gaveta, que mantinha fechada, em sua sala.
Elas seriam o instrumento utilizado para matar; o cabo de prata e a lâmina afiada, esticada na ponta e “condensada” no meio, ajustava-se perfeitamente às mãos (e intenções) de Martim. O plantonista – ao contemplar a reluzente coleção – pensou que poderia fazer uso de uma faca comum e dela se livrar depois do ato consumado, seria mais seguro, concluía. No entanto, desse modo – repetia em rápidas e silenciosas narrações – haveria a constituição de um gesto precário, quase-vulgar e – de vulgaridade – não vivia: jamais mataria para esconder, mataria para vencer provando o gosto da superação, mataria para desfazer um dos elos da vida e receber o fluxo ali contido, inesperadamente arrancado.
E isso implicava em deixar uma marca, em plantar uma evidência, em revelar-escondendo uma intenção, um gesto proibido. E por mais que planejasse matar para si, havia um germe crescendo lentamente em suas intenções que o incitava a fazer para os outros, que clamava por exposição, que desejava brincar de gato-e-rato.
“Será que todo assassino profissional é assim?” Essa necessidade de auto-exposição era curiosa porque fazia com que imaginasse perseguições e manobras de fuga; o que também implicaria num estilo de vida que o afastaria de Taís e tratou de pensar naquela perspectiva como uma “brincadeira de adolescente”, uma “deliciosa tentação” que deveria ser mantida, cautelosamente, a sete chaves.
– A vítima
Vieram as férias de julho, uma viagem, com Taís, para Morro de São Paulo, na Bahia, e um agosto teimoso, comprido demais, citadino demais. Morro continuava um lugar esplendoroso, porém, com pousadas sofisticadas e gente-turista-profissional se atropelando pelas praias. Houve um momento em que, nas ruelas da vila, ele se sentiu em alguma praia do litoral norte de São Paulo e não gostou, encostou-se num poste de madeira, próximo de uma igreja em ruínas e tratou de relatar para Taís o que era Morro, dez anos atrás.
“Vamos descobrir a magia-que-resiste, Martim; não se pode transformar totalmente um lugar como esse”. As palavras da moça tiveram um efeito instantâneo sobre a alma do namorado, a sombra se dissipara por completo e a alegria que exala das terras baianas foi tomando conta do casal delicado (que esbanjava sensibilidade e consciência ecológica). Dessa viagem, ele se alimentou em agosto e setembro, pois, o final do ano se aproximava e parecia que – de fato – se tornaria um psicólogo.
Apesar da importância do passo que seria dado e de desejá-lo com força e alegria, o- amante-das-viagens sentia desconforto com a definição que se aproximava. Martim sabia ser em movimento, sendo e desfazendo, em trânsito; dava sempre a impressão de que não pertencia a lugares ou categorias. No entanto, ao render-se aos requisitos finais para a aquisição do diploma de psicólogo, seria fixado numa condição de interpretação da subjetividade humana, o que no fundo causava-lhe espasmos de não-aceitação, uma quase-física reação de expulsão, que, em tempos anteriores, transformaria em viagens-abandono.
Enquanto o moço reagia à definição que se avizinhava, Taís precisou passar um final de semana em companhia da mãe: elas teriam de fazer uma pequena viagem e o futuro-psicólogo viu nessa novidade uma oportunidade para, finalmente, colocar seus planos em prática. Ficou tão excitado com a possibilidade que precisou disfarçar, usando a disciplina que vinha aprimorando para produzir, na frente da namorada, um semblante conformado e um tanto irritadiço.
Os dias foram longos e ele teve de se impor restrições penosas para não ser engolfado pela excitação jovial e reluzente “da primeira vez”: deixou de comer, dobrou as horas de exercício, lutou com mais tenacidade em suas aulas de defesa pessoal. Por fim, recobrou a lucidez e em seus olhos podia sentir uma frieza calculada, que transformava cada instante num extenso intervalo, fazendo com que mantivesse o controle das reações através do pensamento.
A companheira embarcou, ele voltou para casa, pegou tudo de que precisava e levou para a escola; retornou ao apartamento, vestiu a roupa que escolhera para a ocasião, e quis olhar para si antes da execução. O Vale da Lua lhe mostrou um homem diante de um “grande acontecimento” e a sua frente havia uma linha divisória. Sentiu que a atravessaria se cometesse o ato, e não via com clareza o lado de lá. O quase-jornalista, nesse instante, sentiu medo; e se batesse um arrependimento depois? E se fosse consumido pelo remorso? E se fossem mais espertos do que ele e o identificassem?
Martim fraquejou, uma primeira vez, diante da “presença” da namorada no quarto; temeu pelo sofrimento que pudesse causar a ela e pela possível destruição da felicidade de ambos. Não quis mais olhar, saiu rapidamente do apartamento, começou a dirigir pela cidade e recobrou a calma com o ar da noite batendo em seu rosto. Aos poucos, a frieza retornava e a intenção de experimentar do cálice-rubro ascendia para primeiro plano. Foi até um afastado e discreto bar, de universitários; um bar que era o paradeiro de pessoas em busca de todo tipo de aventura.
O rapaz solitário não sabia direito o que pretendia, mas não seria difícil encontrar companhia num lugar daquele. Não demorou e foi assediado por um moço que vendia haxixe; o futuro-psicólogo puxou papo, se fez de “ingênuo” e “rico”, convidou o garoto para um passeio pelas boates da cidade e quando viu estavam em seu carro, ouvindo música e bebendo vodka. Em pouco menos de uma hora e meia, todas as informações de que precisava foram colhidas com facilidade: Gabriel, 22 anos, aluno do curso de medicina da UNICAMP, paranaense, morando em república etc e etc.
Martim bebia pouco, e tentava fazer com que sua vítima também não bebesse além da conta; queria-o desperto, capaz de reagir. Os dois pararam em outro local, uma pequena lanchonete, e enquanto comiam falavam, e enquanto falavam, riam; e foi então, que ele fraquejou pela segunda vez: a vivacidade de Gabriel o encantava e viu, com precisão de detalhes, o fluxo de vida que iria estancar. Viu sonhos interrompidos, viu a juventude amputada, viu que o som daquela voz não mais ecoaria, viu amores não vividos, viu filhos não-nascidos, viu o fim. O rapaz, sorrindo, pediu licença e foi ao banheiro, demorava, o plantonista pensou – agoniado – que era então a sua chance de fugir, de desaparecer noite adentro – para sempre.
Gabriel, ao retornar, constatou que a conta fora paga e que Martim o aguardava encostado no carro, apreciando a noite; “eu tenho cocaína em minha escola, quer ir até lá para pegarmos?” A frase saíra natural, sem o menor vestígio de intenções escusas, contextualizada. Estava feito e tudo dependeria apenas da resposta da vítima. Ele evitou encarar Gabriel, não queria dar gravidade ao momento, era apenas um convite para compartilhar drogas, simples assim, e por que não? “Claro que vamos, começamos por lá e terminamos num lugar em que se dança, certo?” Ele fez que sim com a cabeça, entrou no carro, respirou fundo e se viu tão próximo do seu objetivo que se sentiu poderoso, único, singularmente-ele-mesmo.
Ao chegarem, percebeu que o rapaz ficara impressionado com a beleza e o tamanho da escola. Martim contara que herdara um dinheiro com a morte do avô e que resolvera investir para fazer mais dinheiro; a história que ofereceu ao universitário era parecida com a sua, apenas alterava detalhes que, por algum motivo, considerava “perigosos” ou “desnecessários”. E por ser a “sua” história, era tão simples e tão fácil contá-la, que parecia uma “narração”, sem a empostação de voz, naturalmente.
Ele entrou com o carro na garagem – que transformara em pátio – desceram e se dirigiram para sua sala. Gabriel estava ansioso para confirmar a qualidade da droga. Martim abriu portas, ganhou corredores e viu-se muito próximo do local em que pretendia cometer o crime; com discrição, abriu a gaveta com sua coleção de facas, colocou-as num local estratégico; depois, de outra gaveta, retirou um pacote de cocaína mostrando-o para Gabriel. O rapaz sorriu, aproximou-se e tratou de experimentar “a farinha”. Martim pegou a maior das facas, desembainhou-a, afastou-se de Gabriel e esperou, calmamente, que o efeito passasse.
O rapaz permaneceu em êxtase por uns trinta minutos; ocupando uma confortável cadeira giratória, virou a cabeça para trás e, de vez em quando, suspirava. O efeito passou e ele fez menção de cheirar mais, Martim sugeriu que o fizessem na rua, depois, porque desejava mostrar-lhe sua coleção de moedas antigas; Gabriel concordou, “onde estão?” Quis saber cheio de curiosidade. “Me acompanhe, fica ali nos fundos, noutra salinha, ligada a esta”. E saiu e foi seguido pela vítima; o coração de Martim batia acelerado, sentiu-se pronto para o ataque; ao chegarem, o quase-psicólogo virou-se e disse: “está aqui!”
“Eu não vejo, em que lugar?” Gabriel, automaticamente, começou a procurar e quando encarou Martim novamente viu-o empunhando uma faca. O plantonista foi ágil e com um movimento preciso acertou-o em cheio, bem no peito; por uma fração de segundo, seus olhares se cruzaram e o quase-assassino fraquejou pela terceira vez: viu a vida assustada, surpreendida, incrédula. Gabriel soltou um grito, cambaleou, esbarrou numa mesa e tentou encontrar alguma coisa para se defender, ele pressentira que Martim recuara, tinha ainda uma pequena chance. Arrancou um pedaço de madeira de uma porta de armário e tentou ferir seu oponente, porém, ao se movimentar, sentiu uma dor lancinante, gritou novamente e, mais uma vez, a lâmina atravessou sua pele, seus órgãos, sua alma.
Martim desfechara rapidamente outros dois golpes; Gabriel tombou, gemeu, se contorceu, gemeu de novo e morreu.
– O lado de lá
“Foi tão fácil”, ele pensava, “foi tão fácil”, repetia baixinho enquanto um tremor percorria seu corpo. Foi mais fácil e rápido do que imaginara, o ato em si era parecido com uma luta: movimentada, viril, imprevisível, arriscada. Ao ver o corpo de Gabriel inerte, colocou a faca no chão e se ajoelhou para olhar bem de perto; com a mão que desfechara os golpes, ajeitou os cabelos do moço e passou os dedos em seu rosto: como era estranho um corpo sem vida.
Se a primeira sensação fora o alívio pela facilidade da coisa, a segunda foi a estranheza pelo corpo inerte; permaneceu ajoelhado olhando, havia muito sangue, por isso tomou cuidado para não se sujar demasiadamente. Ele conseguira o que queria: havia vencido a vida, e pela interrupção abrupta, estancada. Foi lento, mas aconteceu exatamente como previra: uma sensação indescritível tomou conta de suas entranhas; era como se forças invisíveis se apoderassem de seu corpo condensando e produzindo uma potência rara, capaz de separar elos revestidos de continuidade e resistência.
Martim sorriu, levantou-se, estufou o peito, retesou os músculos e pensou: “eu posso tanto quanto o que gera e tira a vida”. E sentiu uma profunda alegria: o belo-assassino podia bem mais do que a grande maioria dos seres humanos.
– O restante
O quase-psicólogo ajoelhou novamente e permaneceu um longo tempo degustando a “experiência” antes de tomar as providências necessárias; de repente, bem diante de seus olhos, como num sonho, viu a linha divisória e a atravessou: era como o portal de Morro, havia um arco e na parte de cima uma frase, no entanto, não conseguia ler. Não fez esforço algum, o que as palavras indicavam, sua alma, com certeza, reconhecia. Suspirou.
A primeira formulação que conseguira realizar é que a nova experiência diferia substancialmente da felicidade: “é outro tipo de coisa”, dizia baixinho; “é como um dever, só que às avessas; no dever, se faz porque tem de ser feito, a imposição é coletiva e o resultado vai na direção da aceitação social; na ‘base’ não é bom nem ruim, é necessário. Matar é a mesma coisa, só que vai contra a imposição social e não se recebe recompensa, mas não é bom nem ruim, é uma possibilidade de afirmação individual sobre as determinações do coletivo”.
Martim via uma neutralidade branco-amorfa enraizando a base daquele tipo de ação humana, o que se sentiria depois seria a conseqüência dos ensinamentos da coletividade, aí é que se colocava a questão central: exatamente nesse ponto é que se travava a discussão moral e ética; exatamente nesse ponto é que se definiria a adequação ou inadequação do ato que acabara de cometer.
“Era, definitivamente, uma questão de poder”, ele sentenciara. Era uma forma de vida se contrapondo a outra, simplesmente, e a simplicidade da situação assustou-o: “ou você inclui as outras pessoas e as respeita como tendo a mesma importância que você ou as submete ao que considera o mais importante: sua forma de ser. São apenas duas possibilidades de direcionamento, nada mais”. Aquela estonteante simplicidade o incomodou, parecia que as religiões tinham razão em sua fórmula simplista de bem versus mal: bastava traduzir bem e mal para exercício-de-poder, tirar a conotação de prêmio ou castigo divino que a situação ali estava, plenamente definida.
E se fosse tão simples – sua inteligência ainda relutava – faltava uma parte que somente a soma dos dias seguintes poderia determinar: o eco do que realizara iria revelar o que sentia, e o prazer ou a dor indicariam quem – de fato – seria.
A segunda parte foi realizada como o planejado: embrulhou o corpo de Gabriel em grandes sacos plásticos comprados especialmente para isso, arrastou-o e colocou-o no porta-malas do carro; limpou todas as dependências exaustivamente para que não houvesse o menor vestígio: esfregou, lavou, esfregou com mais força, enxugou, lustrou e tratou de recolocar as coisas no lugar. Estava perfeito, dificilmente alguém poderia dizer que algo incomum acontecera.
A perícia técnica, com equipamentos sofisticados, poderia evidentemente descobrir os detalhes imperceptíveis da luta assassina, mas estávamos no Brasil e isso parecia pouco provável. Martim colocou todo o material que utilizara para a limpeza junto ao corpo inerte e dirigiu-se para fora da cidade, em direção ao sítio da família, próximo a Indaiatuba. Era madrugada, havia dispensado o casal que tomava conta de sua propriedade e pretendia queimar as provas nas margens do imponente rio que circundava a antiga casa (e que tanto alimentara a sua imaginação de criança).
Ao atravessar a porteira, parou o carro para respirar o ar nostálgico e familiar, de sítio com fazenda, de café forte de avó, de rio perto, logo aqui. Ouvia o barulho de animais, via a escuridão querendo ceder aos primeiros sinais da claridade-renovadora e lembrou-se de que os olhos de Gabriel jamais veriam o que ele via, o ciclo havia terminado. Avançou e agora o barulho das águas sobrepujava o barulho dos animais. Foi em direção a uma beirada de rio à direita do casarão, parou, deixou o farol aceso, retirou o corpo, desensacou-o, arrastou-o até uma espécie de gruta (aberta nos fundos), voltou, pegou o restante do material, fez um monte, jogou gasolina e ateou fogo.
Martim viu o monte arder, horas a fio; de vez em quando, revirava o “material” com um ancinho e jogava gasolina novamente.
Assim foi, até que tudo se transformasse num leve-amontoado-de-passado-em-cinzas. Sorriu.
– O rio que corre
Ele dormiu pouco, comeu pouco, quis entrar na piscina e sentir a água. Nadou, tomou sol, atendeu ao telefone e voltou ao lugar em que havia queimado o corpo de Gabriel: Martim revolveu a terra, não dava para identificar que tipo de “objeto” tinha sido queimado ali.
O belo-assassino caminhou até o rio, sentou-se na beirada e ficou a contemplar o movimento das águas. “O que virá agora? O que sentirei? Como será a ‘rebordosa’ de um assassinato”? Não foi agradável ter que se desfazer do corpo, mas o resultado compensara, nenhuma pista havia: a placa do carro era outra, não deixara suas digitais em objetos comprometedores, poucas pessoas olharam para ele, e Gabriel desaparecera da face da terra. “Alguém seria capaz de dizer que, algum dia, aquele rapaz existira?”
A paz de espírito que vinha sentindo impressionava-o: nenhum arrependimento, nenhum remorso, nada de culpa: “estou limpo e nem viciado sou”, era o que repetia baixinho, no mesmo ritmo das águas do rio. Nesse instante lembrara de André, agora o avaliava com ganho de causa: “um amador, um reles amador; uma criança revoltada com o mundo; um produto social mal acabado”. E riu alto, lembrando da manhã chuvosa em que ficara impressionado com a cena dos meninos da Fundação Casa chegando à Clínica.
“Eu era tão puro, tão ingênuo”. E da gargalhada irônica, caiu numa tristeza comovente, sentiu que perdera, com o crime, a ingenuidade dos que não rompem barreiras proibidas. “Não sou mais bonachão, não sou mais ingênuo e não temo o proibido, eu sou aquele que vive do poder solitário de se afirmar sobre as forças que regem a vida e a morte. E assim desejo permanecer”. A sentença não o assustou, nem surpreendeu. O rio corria fazendo barulho-canção e Martim Lopes Prado se via vagando de cidade em cidade a escolher pessoas para matá-las; depois, se instalava em outro local e recomeçava, com outro sotaque, com outros interesses, disfarçado, camuflado, feliz.
E ficou naquela condição-visionária uma noite e um dia, sentindo as águas correrem, na mais completa escuridão, na mais aguda solidão, a metamorfosear-se. Martim percebeu que estava “vivendo” a segunda fase do que ocorrera na manhã chuvosa em que conhecera André: o resultado final estava para eclodir, a veste definitiva estava para consolidar-se e o moço sabia que tinha escolhido, que tinha insistido, que tinha cortejado inúmeras vezes a nova possibilidade.
Ele queria ser o que de-fato-fizera: queria continuar matando, matando, matando.
André matara por acaso, por descuido, por não valorizar a vida. Martim matara para vencer o invencível, para tornar-se forte, diferenciado, lúcido. E – naquele instante – identificava seus sentimentos fazendo contra-peso, deslocando camadas, preenchendo espaços, criando solidez-de-base. E – paralelamente – via seu corpo reagindo em sintonia, alargando-se, estremecendo, dando vazão à nova configuração.
Na condição-visionária de matador-andante viu seu amor por Taís ganhar proporções menores, viu esse amor tornar-se uma lembrança doce e reconfortante e, por fim, viu que não passava de uma parte de um passado longínquo, quase não pertencente a si próprio. Viu também sua paixão pela psicologia permanecer intacta, alimentada pela observação das vidas humanas que cruzavam seu caminho, transformadas ou não em vítimas fatais.
E de tudo o que aprendera viu-se acumulando conhecimento, do tipo psico-jornalístico; que o transformava num homem maduro capaz de escrever livros e roteiros de filmes, muitos. Todos interessantes, sempre densos e revelando humanidades proibidas, versáteis, vertiginosamente-singulares. E dos parentes de suas vítimas – um capítulo a parte em sua alma – guardava o sofrimento e o ódio numa beirada de si mesmo, um compartimento revestido de gélidas camadas de indiferença.
E se sabia devedor dessas pessoas, mas não encontrava sequer um traço de arrependimento, apenas lamentava que o desdobramento de suas atitudes provocassem tanta dor.
E, de repente, viu André morto, de amador que era; já que em liberdade assistida, nada conseguiu, nem matar direito nem deixar de matar. E viu que o incorporava, competente que era, como um modelo primeiro, semente-involuntária de uma nova possibilidade de existência.
E, inevitável, viu Taís casada, com filhos, quase-feliz-de-tudo; sem jamais esquecê-lo. E de Vitória, a amiga-de-atender-André, viu uma mãe amorosa, delicada, sem pressa. Martim tentou evitar, mas nessa hora chorou e a metamorfose, que naturalmente-aguardava, se completara: as lágrimas confirmaram a despedida, que confirmaram a separação, que confirmaram que ele, agora, era outra coisa.