Mãe NARCISISTA
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”.(Friedrich Nietzsche)
A mãe narcisista é um fato, habita entre nós, existe. Pode ter permanecido sim, oculta e anônima para o mundo, mas chegou um tempo da pós-modernidade em que os olhos tudo veem.
E ela foi identificada e exposta, invejosa e cruel, desmistificando o amor sagrado de mãe: a maternidade para a mulher narcisista é apenas um modo de exercer a necessidade estrutural de ser admirada, servida e divinizada.
Essa mulher faz uso do indispensável vínculo primeiro para manipular e submeter transformando as singularidades numa extensão de si, que ecoa sempre num movimento insaciável de desejos e intenções, desejos e intenções.
Os olhos dela veem a si, e quando atravessam a autocontemplação, veem o seu reflexo ajustado ao mundo que sente fora de si. E mesmo reconhecendo a diversidade variada das coisas existentes, identifica somente os próprios contornos.
Ela está aprisionada, mas sente o oposto porque a autoilusão lhe concede o universo. E essa mulher viverá acreditando que expande sem ter inaugurado sequer o primeiro gesto de comunicação com os outros.
Existe uma definição para essa existência, uma definição científica, psicológica, psiquiátrica, patológica: “ela apresenta uma disfuncionalidade na autopercepção.” Mas de que tipo? “Ela se vê grandiosa, magnífica, esplêndida.”
E os demais, os outros, como ela os vê? Ah, para uma pessoa de magnitude magnífica, os demais estão no mundo para servi-la, admirá-la e idolatrá-la.
E se esta pessoa de quem falamos se torna mãe, nada se altera.
Os filhos e filhas deverão servi-la, admirá-la, idolatrá-la. Simples assim, evidentemente.
O que significa que a maternidade não possui o mesmo significado para todas as mulheres.
O que significa que o amor maternal não é sagrado nem está acima do bem e do mal.
O que significa que a mãe narcisista não ama os seus filhos.
– Parte II
O narcisismo patológico se constitui num transtorno de personalidade, portanto, não chega a ser uma doença adoecida.
Surge como um modo de existir, como a reação da possibilidade da manifestação da existência.
Assoberbada de si, a pessoa existe na contemplação da sua magnitude através da existência alheia fechando o circulo, cristalizando a configuração.
E, se o mundo se curvar aos seus pés, tudo acontece como deveria: sorriso, gentileza, aceitação. Caso o contrário, ela se reveste de ataque e na fúria manipula, mente, despreza, destrói.
As filhas são o seu alvo preferido. Óbvio, não é mesmo!? São mulheres como ela, e podem apresentar inocência, beleza, talento, habilidades. E podem despertar a inveja negando a magnificência da mãe.
Há dois tipos clássicos de filhas de mãe narcisista: a filha dourada e a filha bode expiatório.
A garota dourada, teoricamente, sofre menos porque consegue a aprovação da mãe em consequência de alguma característica: e tudo nessa filha existe para ressaltar a mãe.
A filha predileta testemunha para o mundo as qualidades que herdou da genitora, que aplaude contemplando a si, egocentricamente satisfeita, na menina de ouro: extensão continuada, produto das suas entranhas, unicamente ela em-si noutro corpo.
O destino da filha dourada é composto de dois percursos, apenas: ou segue cópia ou segue a construção da própria imagem. E não é difícil prever o desfecho da cópia: talvez a inutilidade e a infelicidade do desamor materno.
A outra possibilidade, a busca da tentativa da própria imagem, transformará a protagonista no alvo da fúria rancorosa que a acusará de ingratidão, de descaminho, de perdição.
A garota dourada deverá seguir sozinha; confusa, no início; perplexa, mais adiante; mas sozinha. E ainda justamente irá resvalar na esperança das reconciliações, dos argumentos de lucidez, do mito do amor de mãe.
Nada disso existe na mãe narcisista: não há solução para ela. Jamais admitirá erros, jamais terá compaixão pelo sofrimento alheio, jamais irá se envolver com a dor de qualquer pessoa.
Esse tipo de manifestação da existência começa e finaliza na mesma configuração. Não acontece mudança, alteração, inovação, renovação, não acontece futuro: ela repete a disfuncionalidade da autopercepção por séculos, se necessário.
A inveja da jovialidade da filha dourada revela, por exemplo, a incapacidade de negociar com o tempo porque não se comunica com o que existe além de si.
A obsessão por aplausos e reconhecimento revela, por exemplo, a impossibilidade da criação, da produção, da invenção. Os contornos da imagem são os únicos recursos que possui, esvaziada de dentro que sempre será.
A mãe narcisista existe, portanto, única e tão somente, no olhar maravilhado daqueles que devem admirá-la, pelo que pensa em-si.
– Parte III
O afastamento físico em relação à mãe será a providência necessária para a garota dourada: longe dela, longe dos comentários, longe das atitudes invasivas, longe da chantagem, longe da lavagem cerebral.
A questão é: quem sou?
Ainda misturada no amor devoto, não sabe se o que fez, fez por si, não sabe se o que sente, sente por si, não sabe se o que gosta, tem origem em si.
A depuração irá ocupar o restante dos anos da filha predileta que, em cada aspecto ressignificado, produzirá o em-si, diferente da imposição implacável da mãe, única.
O pior dos piores, no entanto e teoricamente, está reservado para outra filha: a bode expiatório.
Esta será o alvo declarado da crueldade da mãe.
É que acontece entre as duas um desencontro resultante na “projeção” dos conteúdos indesejados transformando a menina-alvo em depositário.
É que o conteúdo existente no avesso do espelho se nutre da impossibilidade da comunicação no amor, da doação, da entrega. Então, aspectos do horror da esterilidade da solidão incomunicável serão colocados fora, para não comportar o insuportável.
E a crueldade projetada se transformará num veneno poderoso que irá corroer o mais valoroso da menina-alvo: sua alma.
As frases mencionadas por ela revelam a potência e a letalidade dos ataques: “Eu deveria ter abortado você.” “Eu sofri muito para ter você.” “Você é feia.” “Você é burra.” “Ninguém irá se casar com você.” “Você será uma péssima profissional.”
E a consequência é que a filha bode expiatório crescerá construindo a identidade de “ser errada” e “louca”.
“O que eu faço de errado para que ela me trate assim?” A frase ecoa gerando a culpa quando acredita ser o que ela diz.
“Ela é minha mãe, mas mãe é carinhosa e afetuosa.” A mente da garota bode expiatório não concilia as duas informações, não identifica o problema, não assimila o vácuo, não integra, não metaboliza: ela é só uma menina.
Então, o desajuste da impossibilidade da assimilação conduz à conclusão perturbadora: “eu sou louca.”
Eis a tríade trágica que habita a filha-desafeto da mãe narcisista: errada, culpada, louca.
Como alguém sobrevive a isso?
– Parte IV
A filha-alvo, décadas depois da infância nefasta e turbulenta, deixa de representar a “filha vítima de abuso e maus tratos” para reivindicar a categoria de sobrevivente.
Ela se associa a outras e se autodenominam sobreviventes.
As sobreviventes do desamor materno.
As meninas “premiadas ao contrário”: aquelas que ouvem uma música que ninguém mais ouve.
As filhas que odeiam a mãe.
E, quando o mito do amor materno se desfaz, o desdobramento consequente adquire validade: mães que não amam não serão amadas.
E, quando o mito do amor materno implode, as adolescentes culpadas e raivosas, muitos e muitos anos e décadas depois, percebem que o problema não era a própria loucura: a loucura estava Nela.
Então, e finalmente, o alívio da sanidade e o horror da revelação pareiam a alma da filha-desafeto: peças se encaixam, a consternação silencia, o vácuo gira veloz e a perplexidade é absoluta.
Absoluta.
– Parte V
Se a garota dourada trata de esculpir a própria imagem em busca do “Quem sou?”, a garota-alvo terá caminho mais tortuoso: reparar danos danosos e extrair o veneno que a constitui.
Os danos danosos podem ser muitos e variados e cada menina-alvo será atingida a seu modo. E fará escolhas sem reconhecer o quanto está danificada, o quanto foi destruída, o quanto de desamor da mãe habita a quase nula estima que devota a si.
E se conseguiu sobreviver foi apenas e tão somente porque de outro lugar chegou o amor que a desenvolveu na infância e através da adolescência: o pai talvez, a avó quem sabe, os irmãos, uma pessoa próxima da família.
Não há quem sobreviva sem um tanto de amor, venha de onde vier. O amor da mãe pode ser fundamental, mas não é imprescindível: eis o que as filhas bode expiatório testemunham.
– Parte VI
A menina-alvo colecionará psicoterapias. Irá deprimir, será ansiosa, de pouca paciência, ressentida e raivosa, impulsiva, vagando de culpa em culpa. Várias farão uso de medicamentos, tratando patologias.
E porque ouvem uma música que ninguém mais ouve, não serão compreendidas pelos psicoterapeutas.
E quando disserem que não querem a companhia da mãe, que não se sentem amadas por ela, que sofrem desde a infância, os psicólogos tentarão intuir a raridade aprofundando, até se depararem com o incompreensível: “eu odeio a minha mãe.”
A estranha frase irá ecoar e somente duas coisas procedem: ou o psicólogo sucumbe ao mundo das crenças milenares ou se abre no rasgo das realidades apreendidas.
E, quando sucumbe, faz algo estranho: une um conceito psicológico à crença: “ela é assim porque também foi maltratada, está reproduzindo o que internalizou.”
A lógica parece perfeita, com alcance e profundidade.
A filha-desafeto, no entanto, sente calafrios e engole seco porque aprofunda a escuridão: “Ela foi maltratada e está autorizada a maltratar? Isso significa que também estou? A sequência corresponde aos maus-tratos dos meus filhos que seguirão maltratando? Não, não, não.”
Não faz sentido, ela intui.
A intuição revela a mais pura inconsistência da frágil lógica terapêutica.
E mesmo que o conceito corresponda aos fatos, não pertence à vivência da menina-alvo.
E mesmo que o conceito componha os livros de psicologia, não explica a sua situação.
E mesmo que o conceito pareça verdadeiro, não condiz com a sua verdade.
Não, não, não: estamos falando de uma coisa que vai além, de uma realidade escondia nas sombras da realidade maior, exatamente o instante em que a dobra o retorce o retorcido.
O psicólogo que não vislumbrou a novidade continuará acreditando que a incapacidade reside numa filha que não compreende a mãe. E fará o desserviço de reforçar dois aspectos da tríade: “errada” e “culpada”.
A filha bode expiatório deverá silenciar e retornar à solidão de costume. No entanto, o pior está por vir: o psicólogo indica o perdão como a melhor estratégia.
Como é medíocre a boa intenção dos ignorantes: o profissional inverte a situação e apresenta o final do processo sem apresentar o início do longo e tortuoso percurso de sarar feridas antigas (e profundas).
– Parte VII
Na capacidade de produzir rasgos de realidade na realidade, o psicólogo que intuir a novidade deixará que a filha-desafeto mostre cada vez mais e mais até que a revelação ocorra: você é filha do desamor de mãe.
Nesse instante, ele sabe que as referências são outras, que o conhecido desajusta, que uma nova perspectiva relacional se apresentou.
E porque compreendeu permite que a menina-alvo compreenda: “o problema não está em mim, está nela. Eu não sou errada, culpada e louca. Eu sou vítima e sobrevivente.”
E quando o véu, enfim, cai, o grau ajusta-se. E, num clarão, ela vê o começo, o meio e o fim em detalhes: “eu não sou amada pela mãe, que, ao contrário, me usa para servi-la, e que me transformou no alvo dos seus ataques.”
A constatação da realidade-em-si fornece à filha bode expiatório, pela primeira vez, as condições do cuidado efetivo do em-si.
Como cuidar de algo que não se sabe o que é?
O tempo perdido, de inutilidades ditas em psicoterapia inclusive, será motivo de revolta para algumas dessas filhas. Mas o que elas ainda não sabem é que precisavam do tempo passadiço e transitório, que necessitavam do avançar decisivo dos anos para reconhecer, compreender e aceitar a própria realidade: filha do desamor de mãe.
– Parte VIII
As feridas são muitas. Algumas estruturais.
Após a revelação, o que cabe à menina-alvo será construir um sentido para a existência, assim: apesar dela, eu…
Apesar dela, eu terei paz.
Apesar dela, farei o bem.
Apesar dela, eu serei feliz.
Apesar dela, não serei como ela.
Apesar dela, irei evoluir.
E cada ferida com os seus desdobramentos consequentes será cuidada, e as tantas cicatrizes darão notícia de uma sobrevivente que ouve uma música que ninguém mais ouve.
– Parte IX
O ideal em situações de desamor, sem dúvida, é o perdão. Mas…
Algumas pessoas trazem no em-si a capacidade do perdão. E perdoam porque são assim: capazes de perdoar. Elas são raras.
E para os demais? Para os demais trata-se de um processo que ocupa o intervalo que tem início na parte zero fechando a configuração na parte dez. E cada avanço possui a mesma importância: a parte um vale tanto quanto a parte oito, a parte três vale tanto quanto a parte seis, a parte nove vale tanto quanto a parte um.
Assim: cada parte é o perdão, com o alcance que lhe é correspondido.
A parte zero indica o não-perdão e a parte dez indica a conclusão do perdão perdoado.
O perdão se constitui numa vivência e ação, ao mesmo tempo. Assim como amar alguém ou ser amigo de alguém.
O perdão não pode ser uma imposição para a menina-alvo, assim como o amor e a amizade também não.
Ama-se ou não. Existe amizade ou não. Perdoa-se ou não.
A filha bode expiatório deve ser livre para considerar a vivência do perdão.
Livre.
E se não a escolher? Não a escolheu, simples assim: deve-se considerar o alcance do posicionamento zero e como se situa, indo até onde se consegue ir.
Considere: evidentemente que estamos considerando a filha que não escolheu a vingança nem a autodestruição, escolhas possíveis em condições de desamor.
– Parte X
A filha bode expiatório de mãe narcisista seguirá a vida numa interação direta com Ela: eu serei feliz, apesar dela, ou eu me vingarei dela, ou eu me destruirei por responsabilidade dela.
Se observarmos criteriosamente, talvez aconteça com todos os filhos, mas no intervalo de um a dez, a relação mãe narcisista-filha bode expiatório ocupa o topo.
O que justifica o comentário de uma sobrevivente: “ser premiada ao contrário.” O que ainda sugere uma “maldição”: o humano deve existir no amor, porém, elas existem no desamor ainda que aconteça sobrevivência, sentido e felicidade.
Outro comentário iluminado: “ser feliz primeiro, perdoar depois.”
O que indica a possibilidade de se chegar à parte dez do perdão (uma esperança para as sobreviventes).
A felicidade neste caso vem junto do sentido, o que desfaz a maldição: o “apesar dela” serviu apenas como passagem, como instrumento para algo Maior.
– Parte XI
Para finalizar, eu tenho que dizer: na Amplitude Maior, mesmo o pior se desfaz. E tudo se iguala, tudo se explica, tudo tem validade.
É assim.
Meu Deus, quantas verdades nestas palavras tão bem colocadas… Obrigada por descrever com tanta precisão e intensidade essa triste realidade!