Helenas – Análise

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– A Complexidade

NESTE CONTO, estamos diante do controvertido, fascinante e complexo
Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), que foi tradicionalmente
chamado de Transtorno de Personalidade Múltipla
(TPM).
Na literatura especializada, os critérios diagnósticos para o referido
Transtorno são:
1 – presença de duas ou mais identidades ou estados de personalidade
distintos (cada qual com seu padrão de percepção, relacionamento
e pensamento em relação ao ambiente e a si mesmo);
2 – pelo menos duas destas personalidades assumem, de forma
recorrente, o controle do comportamento da pessoa;
3 – a incapacidade de lembrar informações pessoais importantes
(lembranças extensas que não podem ser explicadas por esquecimentos
comuns);
4 – a perturbação não se deve aos efeitos de uma droga (por
exemplo, o álcool) ou a uma condição médica geral (por exemplo,
convulsões parciais complexas).
O conjunto de critérios contidos no DSM IV indica, portanto,
que as formas patológicas de dissociação apresentam distúrbios ou
alterações nas funções integrativas normais da memória, identidade ou
consciência.

A NOVIDADE
Em pesquisas recentes (década de 80 e 90), os especialistas descobriram
que a dissociação é, acima de tudo, uma resposta a um trauma
intenso e que a maioria das síndromes dissociativas são transtornos
pós-traumáticos. O que sugere que o fenômeno dissociativo constitui,
até certo ponto, um novo paradigma para a psicanálise e a psiquiatria
psicodinâmica porque nivela, na etiologia dos transtornos mentais,
a importância da fantasia intrapsíquica com os fatos reais.
Desde Freud e Janet, interessados em explicar estados alterados
de consciência, a dissociação é considerada um mecanismo de defesa
em que os conteúdos da mente são banidos da consciência. As pesquisas
recentes, ao enfatizar a importância do trauma na etiologia e
patogênese de diversos transtornos, destacam o aspecto adaptativo
da dissociação: para uma criança que enfrenta o trauma, o fenômeno
dissociativo permite o escape de uma terrível situação da realidade,
oferece uma forma de isolar experiências catastróficas, automatiza
comportamentos e sugere um meio de resolver conflitos irreconciliáveis.
Em resposta ao trauma, o que se constata é que uma dissociação
vertical1 entra em curso fazendo com que os conteúdos mentais passem
a existir numa série de consciências paralelas produzindo a amnésia
e a fuga dissociativas. Na amnésia, a vítima “esquece” o acontecido
e na fuga, “esquece” o passado criando confusão em relação à
própria identidade.
1. Tanto a repressão quanto a dissociação são mecanismos de defesa e, em ambos, os
conteúdos da mente são banidos da consciência, no entanto, eles diferem no modo
como os conteúdos mentais são manejados. Na repressão, é criada uma dissociação
horizontal pela barreira da repressão e o material é transferido para o inconsciente
dinâmico. Diferentemente, uma dissociação vertical é criada na dissociação de forma
que os conteúdos mentais existem numa série de consciências paralelas.

E sobre a confusão referente à identidade, Fairbain Grotstein
(1992) enfatiza: as defesas dissociativas formam alter egos baseadas
nas divisões de percepções e experiências em relação a objetos – e os
selves relacionados a cada um deles. O que, dessa perspectiva, significa
que a divisão do ego em fatias verticais são baseadas em fatias
verticais correspondentes às experiências incompatíveis do objeto
de uma pessoa.

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TDI
1 – A prevalência de patologia dissociativa na população em
geral pode ser tão alta quanto 5% a 10 %.
2 – O Transtorno de Dissociação ocorre numa freqüência de
aproximadamente 3,3% de todas as internações de pacientes em unidades
psiquiátricas.
3 – O diagnóstico é particularmente problemático porque existe,
na maioria dos pacientes, a tendência para esconder os sintomas. Em
decorrência disso, os clínicos, considerando o diagnóstico de TDI,
estabeleceram uma série de temas para incluir em suas entrevistas:
história de abuso físico ou sexual na infância, episódios de amnésia,
distorções ou lapsos de tempo, incapacidade de lembrar fatos da infância
dos seis aos onze anos, situações nas quais outras pessoas disseram
que o paciente fez determinadas coisas que ele mesmo não
consegue lembrar etc.
4 – Apesar de serem fenômenos diferentes, a dissociação e a capacidade
de ser hipnotizado estão proximamente relacionadas. A hipnose,
portanto, pode ser considerada uma dissociação induzida,
provocada num ambiente estruturado.
5 – Cerca de mais de 95% dos pacientes com TDI apresentam
uma história de abuso físico ou sexual na infância.
6 – O fenômeno dissociativo é encontrado nove vezes mais em
mulheres do que em homens.
252 A MULHER LAGARTO E OUTRAS HISTÓRIAS
7 – Os alter egos apresentam diferenças na lateralidade, na escrita,
na voz e dialeto e podem ter nome ou não. Diferenças significativas
na atividade elétrica cerebral entre os alter egos foram demonstradas
por EEG e diferenças ópticas também foram documentadas.

UMA TEORIA
O pensamento atual sobre a etiologia do TDI é resumido na
teoria dos 4 fatores proposta por Kluft (1984b):
– a capacidade de dissociar defensivamente frente a um trauma
deve estar presente;
– experiências de vida traumaticamente sobrecarregadas;
– a forma precisa assumida pelas defesas determinada por influências
e substratos disponíveis;
– experiências tranqüilizadoras e restauradoras não são disponíveis
com as pessoas que cuidam.
As implicações deste modelo etiológico são: o trauma é necessário,
mas não suficiente para causar o transtorno; os conceitos
de conflito e déficit intrapsíquico são relevantes no TDI (a
experiência traumática pode levar a uma série de conflitos) e a
falta de uma pessoa que cuide e tranqüilize em quem se possa
confiar incondicionalmente quando o auto-cuidado é inadequado,
constitui-se, de longe, no fator mais importante para a superação
do trauma.
Em relação aos cuidados terapêuticos, o tratamento para o TDI é
a psicoterapia individual (longa e árdua) associada à hipnose, quando
necessário. Uma forte aliança é crucial para a continuidade do
tratamento e o terapeuta deve ter um papel ativo ao enfatizar a cooperação,
identificação, empatia e colaboração entre os alter egos, bem
como com a personalidade hospedeira.

De acordo com Maumer (1991): “é útil definir o setting
terapêutico como uma nova montagem dramática, transferencial na
qual por vezes, o terapeuta representa o papel de uma figura do passado
do paciente, por vezes, o papel do paciente enquanto este faz o
papel de uma figura do passado e, por vezes, faz o paciente enquanto
o paciente faz o terapeuta e, por vezes, vivencia estados dissociativos
e confusionais à medida que o paciente evoca no terapeuta o que ele
vivenciou”. (p.681)
Pois bem, após essa breve introdução utilizando a perspectiva
psiquiátrica, analisemos o Caso da mulata carioca:
– estamos diante do bem sucedido atendimento – em Plantão Psicológico
– de um Caso clássico de Transtorno de Identidade.
A novidade está na espantosa e rápida recuperação: sete sessões
são suficientes para que ela inverta seu processo de enlouquecimento,
integre as personalidades, sinta-se segura e feliz. Onde está o segredo
disso?
Penso que a resposta se deva a uma série de fatores: aos recursos
internos de Helena, à disposição da paciente de curar-se, à disposição
do marido de que a mulher se curasse, ao encontro dela com
Mariana, ao fato do encontro acontecer no instante extremo da necessidade,
às características físicas e emocionais de Mariana, à poderosa
intuição da aprendiz, à manipulação da variável tempo, ao
supervisor e a sua experiência (ainda podemos acrescentar outros).
Há uma confluência de fatores que propiciam o sucesso
terapêutico; coisa intrigante e curiosa. Muito.
No entanto, o que pretendo destacar, neste momento, é exatamente
o sucesso em sete sessões. Não houve a necessidade de um longo
e árduo percurso; este foi intenso, mas rápido; foi difícil, mas rápido.
Está mais do que na hora de nós, psicoterapeutas, começarmos a
difundir a eficácia terapêutica em poucos encontros (para todos os
tipos de situação, inclusive as mais graves).

É que a variável tempo2, na interação terapêutica, é tão
manipulável quanto outra qualquer. E existem características na parceria
que aceleram ou retardam o tempo do tratamento; no Caso
Helenas, a intensidade do conflito, a densidade da interação, o modo
como paciente e estagiária reagem aos mutáveis e diversos momentos
terapêuticos incrementam o ritmo e aceleram o contato. E as duas
mulheres avançam na direção da cura.
O Conto é repleto dessa característica. Chega a ser vertiginoso o
ritmo. E Mariana conhece a intensidade apenas no instante em que se
encontra com Helena respondendo à altura porque “serve”
terapeuticamente à solicitação de sua paciente. Penso que a aceleração
pertence a ambas. No caso de Helena, arrisco dizer que o ritmo
acelerado diz respeito ao adoecimento: ela tem urgência e pouco
tempo. No caso da estagiária, a vocalista apresenta a capacidade de
aceleração para os conteúdos emocionais referentes ao feminino, suas
manifestações e trato.
E quando se juntam, uma puxa a outra e correm, potencializando
o ritmo. A evidente vantagem disso é a rapidez no trato e a desvantagem
é o desgaste decorrente da quantidade de energia utilizada na
viagem densa e intensa.

A TEMPORALIDADE
É curioso como pouco se fala da temporalidade, no setting
terapêutico.
2. De acordo com a compreensão proposta pela Matriz Terapêutica, o fenômeno clínico
é composto por sete variáveis: o paciente, o psicoterapeuta, a parceria formada por eles,
o tempo, a teoria, o objetivo e o supervisor. No instante em que o paciente e o
psicoterapeuta se encontram ocorre o start, as variáveis interagem afetando e sendo
afetadas e o fenômeno progride em sua constituição. A priori, nenhuma das sete variáveis
deve sobressair e o profissional tem como objetivo hierarquizá-las (na medida
em que apreende o fenômeno) para produzir as intervenções.

Vamos ao tema: cada atendimento, em cada sessão, apresenta um
tempo-ritmo e este tempo não é o cronológico. Abre-se um parêntesis
no tempo cronológico quando se forma a parceria terapêutica e os
dois viajam, sintonizados em tempos diversos. É que, se o si-mesmo
constitui-se enquanto experiência temporal, a parceria terapêutica
reedita essa condição disponibilizando diversas modalidades de tempo
(entrecruzadas).
E, no setting, está o passado enquanto fase do desenvolvimento:
o passado contínuo (infância, adolescência, fase adulta), e o passado
fixado (tempo único, não-desgastável, preenchido pelos conflitos,
traumas, sintomas). Está o presente com o tempo atual, momento do
exercício de identidades, resultado de escolhas (com a avaliação das
perdas e ganhos, e da eficácia do si-mesmo). E também o tempo
futuro, com a possibilidade da alteração do que se é.
E – ainda – no tempo que forja identidades está o ritmo da subjetividade
no trato com os conteúdos afetivos e o psicoterapeuta deverá
ajustar-se ao ritmo da subjetividade-paciente, podendo
instrumentalizar esta variável para pleitear a eficácia terapêutica. A
variável tempo, então, não diz respeito apenas à duração da sessão ou
à quantidade de sessões, mas também à intensidade e à densidade no
trato das questões afetivas.
Acredito que, no Conto, a viabilização da alma espelhada é que
permitiu a intensidade e a densidade em alto grau. A primeira está
relacionada com a potencialização dos afetos, sua vivência (com expressão)
em um conflito ou em uma problemática. A segunda, com a
quantidade de conflitos ou problemáticas visitadas de uma única
vez, em uma sessão.
A intensidade permite a imersão do paciente na problemática para
que o tratamento aconteça em carne viva, doendo. O que conduz à
cura, sem perda de tempo: as defesas e todos os mecanismos de autoproteção
serão neutralizados. A densidade, por sua vez, permite a
aceleração da cura porque promove a visitação a diversas problemáticas
e as encaminha para uma reorganização auto-construtiva.

Numa linguagem psicanalítica: a transferência e a
contratransferência são potencializadas e manejadas com precisão,
risco e eficácia, numa intensidade e densidade vertiginosas. Helena
precisava ser ela mesma em Mariana e precisava que Mariana não
fosse ela mesma, tudo isso em momentos alternados, num auto-diálogo,
na presença do outro.
A transferência, neste Caso, não serve para interpretações, serve
para Helena apreender o si-mesmo através das reações de Mariana; a
contratransferência, por sua vez, serve para que a estagiária produza
intervenções baseadas na lucidez afetiva com vistas à eficácia terapêutica.
E a impressionante semelhança física permite a insinuação, a
configuração e o arremate da condição de alma espelhada.

A FIXAÇÃO
Ainda sobre a temporalidade: no Plantão de Helena há um belo
exemplo de tempo fixado: o trauma em relação ao abuso sexual. E
que, segundo estudos recentes, está na etiologia do TDI. Pois bem,
o que aconteceu num passado remoto continua ecoando e produzindo
efeitos na alma da mulata. O tempo fixado é assim: não sofre o
desgaste de outras temporalidades e o conteúdo afetivo residente
neste tempo afeta sem ser afetado. É que faltaram as condições para
que Helena superasse o trauma (a ausência da mãe ou de pessoa
confiável que cuidasse dela) e uma das conseqüências é que a repercussão
atravessa outros tempos.
É por isso que o tempo contínuo não curou o trauma de Helena:
a ausência de condições favoráveis criou um mecanismo que
isolou o conteúdo impedindo o efeito curativo. No entanto, por
integrar um conjunto temporal de significados, acaba influenciando
os demais e seus efeitos aparecerão posteriormente, muitos anos
depois. Em certo sentido, é intrigante o efeito retardado do trauma:
parece que “ele” trabalha na surdina e quando menos se espera,
eclode.

Eis a explicação: o trauma pode ser compreendido como um
tempo fixado que protegido por um mecanismo, impede o providencial
desgaste do tempo contínuo. Outras camadas de tempo serão
integradas ao conjunto e o tempo fixado, responsável por uma parcela
do todo, afetará sem ser afetado. Porque não muda, propaga a
mesma reação obrigando outras temporalidades a se submeter à intensidade
dos seus efeitos.
É por isso que aparece mais tarde: a reação se constrói lentamente,
produzindo efeitos em camadas de tempo anexadas ao longo dos
anos e que poderão ser ativadas a partir de experiências posteriores.
No caso do TDI, esses efeitos afetam a unidade da consciência, já
que a compreendemos como uma conquista.
É também por isso que o psicoterapeuta tem acesso a todo e qualquer
tempo da subjetividade do paciente. A unidade da subjetividade
é formada por temporalidades que se sucedem, se sobrepõem e
interagem, reagindo com as demais. Um bom exemplo no Conto é o
fato de Mariana interagir na sessão com alter egos que residem num
tempo bem distante da idade atual de sua paciente.
A pergunta mais interessante, portanto, sobre este tema seria: o
que acontece com o conteúdo afetivo do trauma para que não seja
afetado pelo tempo contínuo? Considero que ele esteja relacionado
à propriedade dos afetos, uma delas: a estabilidade. Esta importante
propriedade perpetua a vivência e, porque a pessoa não consegue as
condições de superação (seria necessário a existência de outro afeto),
cria-se um mecanismo de manutenção da estabilidade. E, ainda, à
intensidade da experiência, que bloqueia a ação do tempo ao produzir
um mecanismo de auto-isolamento (fenômeno dissociativo – que
separa determinada experiência do conjunto).
O resultado é obtido, no entanto, os outros componentes da personalidade
serão atingidos pela ilha do trauma porque não estão protegidos
contra ele. Delimitando: a estabilidade dos afetos mais a intensidade
da experiência (dor, medo, ódio em grau máximo) acontecendo
num conjunto que não pode assimilar a vivência geram o trauma.

Para a compreensão do que acontece com a ilha do trauma, em
termos de dinâmica psíquica, é necessário utilizarmos a noção espacial
fornecida pela metapsicologia: a experiência traumática é
deslocada para uma das extremidades da configuração e “isolada”
através da energia investida. O formato peculiar da ilha, por um
lado, filtra a energia dos demais significados diluindo sua influência,
porém, por outro, propaga com forte intensidade a energia referente
à experiência traumatizante.
Seria algo do tipo:
– o fluxo de energia deparando-se com a “ilha” é dividido em
dois: um é deslocado para a parte inferior e pouco a afeta porque
atinge apenas a parte inferior da “experiência-ilha” e o outro é deslocado
para a parte superior e afeta significativamente o conjunto porque
atravessa a “experiência-ilha”, assimila o seu significado e o propaga.
Uma concepção como esta defende que a energia psíquica ao
percorrer a parte superior da ilha faz a “leitura” e integra os conteúdos
afetivos existentes “nesta região”. A energia “deslizando” sobre
a parte superior apresenta, portanto, a propriedade de integração
e propagação de representações circundado pela referida
“vivência”.
O mesmo ocorre com a parte inferior, que fará, no entanto, a
leitura de experiências localizadas “noutras” regiões (as localizadas
“abaixo” da ilha do trauma).
É isso.

A PERFEIÇÃO
Outro tema: o Plantão de Helena indica que uma das características
do fenômeno clínico é a perfeição. É que, ao tomar conhecimento
do Caso, fica a forte impressão de que tudo aconteceu como deveria: que o referido fenômeno aconteceu no lugar certo, com as pessoas
certas, no tempo certo e do modo mais que apropriado.
E qual a melhor palavra para denominar tal característica? Penso
que a perfeição, que significa que o fenômeno clínico cumpriu sua
destinação, ou seja, viabilizou a eficácia terapêutica através da correspondência
exata entre o propósito e a execução. A correspondência
exata indica, portanto, que a funcionalidade atingiu seu potencial
máximo ao promover ajustes e reajustes integrados, justapostos, rápidos
e eficazes.

O HOMEM-QUE-CURA
Mais um tema: a quantidade de enigmas presentes no atendimento
de Helena e a sábia orientação do supervisor para que a estagiária
não sucumbisse à tentação de decifrá-los. O motivo da orientação é
claro: concentrar-se no essencial, há desvios demais, caso contrário,
corre-se o risco de perder de vista a eficácia terapêutica.
A importância deste conceito – eficácia terapêutica – não reside
apenas no fato de destacar o objetivo da interação constituída,
mas serve de referência para que o profissional não se distraia,
nem se afaste do seu lugar-função. É uma referência de si para
consigo, que serve de avaliação e de reconhecimento: uma oportunidade-
condição para consolidar a identidade do homem-quecura.
O que significa que para alcançar a eficácia terapêutica, não basta
que o profissional identifique “o direcionamento adequado”, tem
ainda de vencer tentações para não enveredar para direcionamentos
que conduzam à exploração conceitual, à teorização, e à manutenção
das condições do paciente. O que não é fácil. Isso faz com que o
exercício de nossa profissão seja verdadeira arte.
Considero que a motivação maior do psicoterapeuta seja, então,
encarnar a identidade do homem-que-cura. O que conduz à questão:
acima de tudo, o que se pretende ser? Um teórico? Um sábio?

Um técnico? Um pesquisador? Ou alguém que proporciona um efeito
de melhoria na vida de outra pessoa?
Uma definição razoável seria:
– o homem-que-cura é alguém que materializa a sabedoria terapêutica
instrumentalizada – arriscando a própria integridade física e psíquica.
O homem-que-cura é assim, ele tem essa missão. O que esse profissional
faz vai além do campo das ações, diz respeito à própria existência
e, portanto, do que pode dispor de si, na interação, para o
paciente.
É o que vimos com perfeição na relação Mariana-Helena.
E a estagiária tem razão. Como negar o fascínio? Como ignorar
os convites à curiosidade? É a complexidade do Caso que faz com
que apresente tantos enigmas, pois, questões relacionadas à memória,
identidade e consciência serão sempre complexas e intrigantes.
Os alter egos com suas histórias, voz, características e parcelas de
alma são magníficos: eis um universo fascinante, desconhecido,
perturbador.
E Mariana vence as tentações porque almeja ajudar Helena, simples
assim.
Ainda neste assunto e retomando a questão inicial: por que a
paciente melhora? De onde vem a súbita guinada? Ela melhora por
muitos motivos. Um deles é quando inicia seu contato com Mariana.
E cada sessão, cada intervenção, cada reação de ambas conduzem ao
resultado positivo. O encontro ocorre num momento decisivo: a
paciente está em uma encruzilhada e chega ao lugar certo, na hora
certa.
Do mesmo modo que houve uma confluência de fatores para
que a mulata se avizinhasse da loucura, começa a “existir outra” confluência no sentido contrário. O curioso é que parece premeditado.
Será? Eu não sei dizer, mas também não pretendo negar “a coincidência”.
O fato é que a integração da personalidade acontece em um
ritmo vertiginoso, a ponto de surpreender e parecer magia3. O difícil
não é compreender a integração, o difícil é explicar porque tudo
contribuiu para isso.
Na segunda sessão, em que Mariana conversa com a Ninfomaníaca,
a fala bem-dita sobre o Amor e a Destruição atinge em cheio o
cerne do conflito: Helena caminha na direção da Destruição do seu
objeto de amor e não quer fazer isso, então prefere auto-destruir-se. É
uma disputa entre o Amor e a Destruição, com toda intensidade e
densidade.
Eu considero que este é o instante da inversão: a partir daí, os
efeitos serão propagados afetando outras representações e a engrenagem
empregará toda sua força para redirecionar a vida emocional de
Helena. A energia que a conduzia para a doença será reinvestida na
cura.
O que indica que em termos psíquicos, o Todo possui propriedades
distintas de suas Partes: a fala bem-dita, localizada e específica,
dá início a um processo que integra as demais “regiões”. É como se o
Todo submetesse as Partes às suas leis com o objetivo de alterar a
configuração, nesse instante, soberana.
3. Héctor Fiorini, em seu livro, Teoria e Técnica de Psicoterapias, apresenta a melhor explicação
que conheço sobre as notáveis mudanças que os pacientes podem conseguir
num período breve de atendimento. Ele faz referência a ciclos de crescimento autônomo
em espiral (ascendente ou descendente) com base em modelos policausais de ação em
cadeia. Associado à autonomia do ciclo verifica-se um caráter de bipolaridade em
sistemas de oposição binária funcionando sem pontos intermediários de significação
(regime de tudo ou nada). O sinal global do ciclo seria invertido através de estímulos
breves ou de escassa intensidade ocasionando saltos de significação.
A explicação encontra-se no capítulo 09 – Dinamismos e níveis da mudança em
psicoterapias, Martins Fontes, 2008.

A INTUIÇÃO
No Conto, vemos que a inexperiência da aprendiz é compensada
por uma poderosa capacidade diagnóstico-interventiva: aquela que
é proveniente da intuição.
Vamos ao polêmico tema: a intuição e sua manifestação:
– Mariana desconhecia essa habilidade (em si mesma);
– a referida habilidade surge inteira (pronta e acabada);
– o fenômeno se manifesta em totalidade;
– o que se exige é um treino do “olhar”;
– não há consciência, portanto, não há controle.
Quais suas características?
“Considero que seja a aparente ausência de raciocínio, o tempo
único e a totalidade do que se vê. Em relação à ausência de raciocínio,
não acredito que exista, talvez seja uma forma de raciocínio
acelerada, realizada num tempo único, em que a imagem (expressando
a forma) adquira supremacia e incorpore as cadeias de pensamento,
apresentando assim o fenômeno na sua totalidade: a imagem em
movimento seria, portanto, o modo privilegiado de manifestação do fenômeno
em tempo único, que, por ser imagem, deixa a impressão que
dispensa o raciocínio, porém, não o dispensa, mas o incorpora.
A imagem em movimento, ao incorporar o raciocínio, exige do
observador um treino do olhar, ou, melhor dizendo, um talento para
olhar, o que implica submeter o raciocínio a outra modalidade compreensiva;
por sua vez, em evidenciar-se em forma de imagem em
movimento, a totalidade é o que se apresenta, porque todas as partes
que compõem a imagem podem ser contempladas revelando significados,
e o movimento faz com que o observador presencie as relações
que envolvem as partes constituídas. O tempo único talvez indique
um tempo que não exija desdobramento, isto é, que não requeira outro tipo de procedimento que não a manutenção do olhar e
a movimentação da imagem ao revelar o fenômeno; coincidentemente,
necessita do mesmo-tempo, que adquire a conotação de instantâneo,
não porque acontece num segundo, mas porque se efetiva
na mesma modalidade temporal (não desdobrada)4″.
É chegada a hora (por mais que seja controverso abordar o referido
tema) de atribuirmos a devida importância à intuição: ela se
constitui, a meu ver, num dos pilares para o alcance da eficácia terapêutica.
E os pilares são três: o conhecimento, a experiência e a intuição –
que necessitam do sopro da sabedoria para a perfeita utilização.
Detalhando:
– O conhecimento refere-se ao Saber sobre a condição humana,
seja ele especializado ou não: trata da alma, das emoções, da percepção,
do comportamento e da intersubjetividade (as relações humanas
em suas diversas facetas).
– A experiência evidencia o Trato com a diversidade das situações
terapêuticas e resulta na capacidade de interação sofisticada e
para além dos efeitos terapêuticos. Nesse tópico estão presente a disponibilidade
e a maturidade afetivas.
– A intuição corresponde ao Conhecimento Apropriado, pois,
revela – sem equívocos – o fenômeno. Refere-se ao talento para “olhar”
identificando condições, causas e efeitos na totalidade temporalizada.
Associada aos três está a perfeição, como já foi dito, que refere-se
à correspondência exata entre o propósito e a execução. E o sustento
4. Os parágrafos citados estão localizados nas páginas 168 e 169 do meu livro, “Matriz
Terapêutica e os equívocos da prática clínica em psicologia”. Eu mantive os grifos
originais.

da perfeição vem da sabedoria, que possibilita escolhas éticas através
da viabilização do Bem Maior em termos de perspectiva terapêutica.
No conto, Mariana transforma-se na detentora de um conhecimento
incomum quando sua intuição permite que conheça a totalidade
do fenômeno.
Ela visualiza:
– um processo de ação e reação contemplado por escolhas;
– o passado, o presente e o futuro;
– o como e o porquê;
– as Partes (autônomas) integradas ao Todo.
De posse do talento de olhar-conhecendo, sente-se parte do fenômeno
sabendo que pode interferir (o modo e o instante para tanto
se tornam conseqüência da possibilidade de ver).
A inexperiência da cantora, então, é compensada pelo privilégio
do conhecimento apropriado e todo o conhecimento que adquiriu é
submetido ao que vê. E ela escolhe fazer o que deve ser feito: ajudar
Helena. A nossa aprendiz escolhe fazer de si a heroína que sempre
foi, sendo este o único modo de salvar a mulata carioca.
A intuição, portanto, une dois universos porque integra quem
vê e os faz funcionar em sintonia para que o si-mesmo possa deixarse
assimilar pelo Não-eu.
Eis o cerne da questão. Eis o ápice desse atendimento misterioso,
denso e intenso.
E o resultado do poder da intuição, em Mariana, a conduz à
humildade. O que significa que compreendeu, sendo presenteada
com a validação da escolha que fez em relação à psicologia.
Pois bem, a intuição terapêutica é exatamente isso: o modo apropriado
de conhecer para que a eficácia seja contemplada (através de
escolhas, de ambas as partes).

O FINAL
Para finalizar: não houve necessidade da utilização da técnica da
hipnose, neste Caso. A eficácia terapêutica dispensou essa modalidade
interventiva. Os medicamentos receitados pelo médico, por sua
vez, não atrapalharam o atendimento de Plantão porque não houve
discordância entre o diagnóstico psiquiátrico e o psicológico (mais
um indício de perfeição).
Assim como o atendimento de Helena se constituiu em enigmas,
desvios e surpresas, sua análise não poderia ser diferente: há inúmeros
direcionamentos apresentando possibilidades inesgotáveis de
reflexão. Que a permanente reflexão, então, nos guie.
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
Os autores e dados de pesquisa utilizados nesta reflexão estão no
livro Psiquiatria Psicodinâmica, de Glen O. Gabbard, tradução de
Luciana N. de A. Jorge e Maria Rita Secco Hofmeister. Porto Alegre,
Artmed, 1998, Segunda edição.
Os Transtornos Dissociativos estão localizados na Seção II, da
página 174 à 198.
Em relação ao DSM-IV: Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disordes. Fourth Edition. Washington, DC. American
Psychiatric Association, 1994.

 

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